1. “E a noite como o dia ilumina” (Sl 139,12). Há noites como esta que iluminam como o dia. E não é porque a cidade esteja mais iluminada. É porque esta é a noite de natal. Mesmo se esta palavra, que nasce sob o signo da criança e do vir-ao-mundo, soa hoje como algo artificial e parasitária. Os recém nascidos só chegarão a ser sujeitos com êxito no parto, se começaram a largar peso e a dissolver vínculos. Não, o natal não é a festa das ligações: nascer é desligar-se. Só o mito do Pai Natal, da obrigação das prendas e do estar juntos nesta noite sustenta esta ficção. Quem traz algo ao mundo fá-lo para se desligar e para se tornar mais ligeiro.
2. As mães parem ou são “desligadas”, as crianças vêm ao mundo. O vir-ao-mundo significa também vir-à-linguagem, encarnar. Ser parido é des-asfixiar-se. É este o protótipo cénico de todas as experiências de libertação Na dor do parto a criança trazida ao mundo não cai de chofre noutro cenário que não seja o dominado pelo peso da liberdade e do braço desse contrapeso que na linguagem quotidiana se chama amor. À luz do nascimento brilha o primeiro esplendor de liberdade externa e com ele a claridade. A Vita nova de Dante e Bloch tem na evocação deste prelúdio a sua razão de ser. Aqui começa o Aberto, o Imprevisível e o Incerto.
3. Voltemo-nos para a Escritura. César Augusto julga que é deus, por isso manda fazer um recenseamento universal. Na Bíblia saber o nome dos homens na terra é um saber reservado a Deus. David quis fazê-lo e arrependeu-se como de um grande pecado (1 Cr 21,8). José, descendente obscuro de David, obedece ao imperador. Note-se: o gesto de César inverte o gesto de Deus que se faz homem e servidor de todos. Outro paradoxo: Maria é a sua noiva grávida, algo de irregular segundo a lei judaica: o noivado é um compromisso definitivo, mas o acordo é assinado antes que os noivos coabitem.
4. É em Belém que vai nascer o filho prometido a David, conforme o profeta Miqueias. David era pastor e são os pastores os primeiros a ver Jesus, o fruto da graça. Esta é uma das graças desta noite: que os pastores se tornem reis e que a palavra de graça se faça carne em Maria. Mas não há lugar em Belém: será numa manjedoura que Jesus vai nascer. Desde o nascimento, que se dá no lugar em que vivem pessoas do exterior – os pastores – até à morte – Jesus morrerá fora dos muros de Jerusalém – que ele está ao lado dos excluídos e bandidos. Os pastores são mal vistos – têm-nos por ladrões, não têm direitos cívicos nem podem servir de testemunhas porque vivem fora dos Templo e da sinagogas. É a eles que primeiro se mostra do Senhor. Há mesmo um anjo que deixa o Templo – porque é aí que reside a glória e se junta a eles! E ei-los envoltos na luz de Deus, em plena noite! Bem dizia Isaías: “eu mudarei a obscuridade em luz” (Is 42,16). Admirável é que o anjo anuncie uma grande alegria ao mundo com as mesmas palavras de Páscoa que Pedro utiliza “Deus estabeleceu como Senhor e Messias a esse Jesus por vós crucificado” (Act 2,36).
5. Qual o caminho moderno para Deus? Na cultura contemporânea, a transformação está em toda a parte: na publicidade, nos efeitos especiais dos filmes, nos brinquedos, na pintura holográfica, na política do corpo (operações de mudança de sexo, cirurgias cosméticas), na localização das fronteiras políticas, no discurso religioso, na filosofia New Age e na retórica da publicidade. Estamos constantemente a ser instados a nascer de novo; abrir-se ao crescimento espiritual, experimentar novas formas de vida.
6. O nosso mundo é incompreensível sem a tomada em consideração a afluência de motivos utópicos persas e judaicos no espaço europeu. Pérsia, a mãe do dualismo e do decisionismo: a Pérsia islâmica de hoje prometeu a luz e só conseguiu alistar os seus jovens para a morte na frente ocidental mais obscura. A utopia judaica gastou-se: basta ver imagens de soldados israelitas que patrulham até aos dentes a Páscoa de 1988 por Jerusalém e por toda a Terra santa assim chamada. O prometedor Deus do desligamento libertador que fala da sarça ardente transformou-se arcaicamente numa espécie de Baal territorial que distribui passaportes e recruta corpos amados.
7. Na história das religiões encontramos duas atitudes básicas na relação entre o global e o universal. No cosmos pagão reina a ordem divina hierárquica de princípios cósmicos, que aplicada à sociedade produz a imagem de um edifício coerente, em que cada membro tem o seu próprio lugar. O bem supremo é o equilíbrio global dos princípios, enquanto o mal representa um desequilíbrio em detrimento dos demais (do princípio masculino em detrimento do feminino; da razão em detrimento do sentimento). O equilíbrio cósmico restabelece-se por meio da justiça que endireita de novo as coisas, eliminando o elemento que saiu da ordem. O cristianismo (e a seu modo, o budismo) introduz nesta ordem cósmica global um princípio completamente estranho a ele, uma monstruosa deformação: o princípio segundo o qual cada indivíduo tem um acesso imediato à universalidade (do nirvana, do Espírito Santo ou dos direitos humanos hoje). De facto, o budismo rompe com a hierarquia da ordem social global que considera irrelevante (Buda ignora as castas e a diferença sexual). E é no mesmo sentido que vão as palavras de Cristo: “Se alguém vem ter comigo e não me tem mais amor que ao seu pai, à sua mãe, á sua esposa, aos seus filhos, aos seus irmãos, às suas irmãs e até à própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26).
8. O ódio que Cristo impõe é uma expressão directa do que S. Paulo descreve em Coríntios 1, 13 como agapé: é o amor que exige que nos “desapeguemos” da comunidade orgânica em que nascemos. Não há homens nem mulheres, nem judeus nem gregos. Para os que se identificam com a substância nacional judaica ou com um império romano global Cristo foi um escândalo traumático. O cristianismo considera que o acto mais alto é aquele que a sabedoria pagã condena como fonte do mal: a separação, agarrar-se a um elemento particular que perturba o equilíbrio do todo. O cristianismo é o acontecimento milagroso que transformas o equilíbrio do uno-todo; é a violenta intrusão da diferença. O universo ideológico da Guerra das estrelas de George Lucas é o universo pagão da New Age. Cristo transtorna o equilíbrio do universo pagão, do vórtice do seu eterno círculo em que todas as diferenças giram submergidas no mesmo abismo. Como não ver uma conexão interna entre a morte das utopias e as metamorfoses político-realistas das promessas desgraçadamente irrealistas de outrora? A esclerose do espírito crítico actual corrobora essa fissura. A fonte de Jesus é Deus; nenhuma família o pode fechar no seu círculo, mesmo por amor! A sua universalidade está inscrita nos registos do recenseamento, é um filho do mundo para a terra inteira.
9. Um sinal não é uma prova. Convoca o olhar e a fé: Deus toma a nossa vida para nos dar a sua. Admirável comércio (troca), dizem os Padres da Igreja: Deus fez-se homem para que o homem se faça Deus! Deus não se impõe, nem é o todo poderoso que força o olhar; não se mostra aos pastores sentado num trono de glória, rodeado de anjos: está ali, criança, rodeada pelos pais. Aqueles que estavam oficialmente privados de palavra tornam-se agora evangelizadores: eles anunciam o que lhes foi dito acerca desta criança. São eles agora os anjos, antecipando o papel dos apóstolos. Este é o começo da tradição evangélica. Maria guarda todas estas coisas no coração, fazendo aquilo que a Igreja não deixa de fazer: meditar na obra da Palavra.
10. Deus não salva de longe; escondido, o Todo-Próximo aproxima-se de nós, dos excluídos aos pobres. Jesus criança é um sinal ao alcance dos pequenos. Só os olhos das crianças reconhecem na criança o milagre da incarnação. É assim a vida: a luz ilumina a noite de Natal, enquanto as trevas cobrem a terra em pleno meio-dia quando Jesus é crucificado. A salvação para nós humanos consiste em viver em presença de Deus, em partilhar a sua vida e a sua glória. O céu está na terra, os pastores, esses excluídos, no céu que não é o Templo, mas o campo. O quadro ordinário das suas vidas tornou-se o Santo dos santos, o lugar da presença de Deus. Os pastores são cidadãos do céu enquanto Jesus, o Filho de Deus se torna súbdito de César. A paz, dom que caracteriza a era messiânica, caminha com a salvação. Salvação e paz para todos os que acreditam no Aberto. Partamos com os pastores a ver “essa coisa que aconteceu” e ajoelhemos diante do milagre que é a vida que nasce e diante de nós se expõe: nua e desprotegida.
11. A nós compete continuar o ofício dos anjos: o louvor incessante de Deus por aquilo que Ele é e dá: “um Deus nos nasceu, filho nos foi dado”. Volte cada um à sua lavra: foi na obscuridade do presépio que os pastores foram iluminados. Que a mesma luz que cobriu os pastores nos envolva a nós nesta noite santa. Assim a luz que vem do alto ilumine o nosso coração para a travessia do tempo e o louvor que esta hora pede.
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