Foi
músico, poeta, professor, tradutor de Proust, investigador. E, além de
tudo, frade dominicano. Homem despojado, queria “net-monges” e olhava
para a estética como central na experiência cristã contemporânea. Morreu
quinta-feira, em Lisboa.
Num dos
textos de A Palavra e o Espelho (ed. Paulinas), escrevia José
Augusto Mourão: “A vida tornou-se texto a partir do meu corpo. Já sou
texto. A História, o amor, a violência, o tempo, o trabalho, o desejo,
inscrevem-se no meu corpo.” A vida de José Augusto Mourão, nascido em
Lordelo, Vila Real, em 12 de Junho de 1947 e que morreu quinta-feira
passada, em Lisboa, tornou-se texto a partir do seu corpo.
“Nós
somos corpos saturados de texto, arquivos do corpo abandonados à traça,
sem memória, textos enterrados ou que já não fazem andar, não movem, não
comovem. Que fizemos do testamento do amor? Que fazemos da promessa da
novidade?”, escrevia ainda, naquele artigo que reproduzia uma das suas
homilias.
Vivia
entre dois mundos, este homem discreto, tímido: “É o mundo da palavra –
a minha paixão – mas uma palavra que tem uma fronteira. Estou entre esse
mundo, o mundo de Deus, e o mundo dos homens – que não há outro.”
Era uma
vida polissémica, tal como o seu objecto de investigação universitária.
Professor e investigador, académico reconhecido, foi um dos introdutores
da semiótica em Portugal. “É um dos nomes de referência nesta área”, diz
ao P2 Maria Augusta Babo, professora na Universidade Nova de Lisboa (UNL),
onde foi colega de Mourão durante mais de década e meia.
Havia
ainda, então, o mundo de Deus. Era frade dominicano. A sua vocação
religiosa, aliada ao trabalho sobre a palavra, levou-o a escrever poesia
(reunida em 2010 em O Nome e a Forma, ed. Pedra Angular), além de
centenas de textos para cânticos litúrgicos. Mas, apesar das múltiplas
vias da sua vida, nem a sua personalidade se fraccionava nem ele
procurava impor a sua fé. “Nunca foi impositivo”, reconhece Babo.
Este
percurso singular, original, começou em Lordelo. A mãe morreu-lhe tinha
José Augusto quatro anos, o pai era professor primário e, “situação
quase inconcebível numa aldeia daquele tempo, não era sequer
praticante”, contou numa entrevista a Maria João Seixas, na PÚBLICA de 8
de Junho de 2003. Tinha mais quatro irmãs.
No final
da primária, José Augusto foi para o Seminário de Vila Real, após o que
demandou o Porto, para estudar teologia. Constou então que ele se
rebelara contra o bispo de Vila Real. Por isso, outro bispo, o de
Nampula (Moçambique, ainda uma colónia), Manuel Vieira Pinto, acolheu-o
durante dois anos para trabalhar na formação de líderes cristãos locais.
Antes de partir, outro bispo, D. António Ferreira Gomes, dissera-lhe num
pequeno-almoço: “Você é um esteta. Não vá para a tropa, que entorpece a
sensibilidade.”
Mas, em
1972, Mourão foi para Moçambique. Viu-se importunado pela PIDE, sob o
argumento de que “andava a agitar padres de cor”, como contava na
entrevista citada. Foi forçado a regressar a Portugal, terminando então
o curso de Teologia. Cruza-se com dois dominicanos – frei Bernardo
Domingues e frei Mateus Peres – que serão decisivos para que integre a
Ordem dos Pregadores, o que aconteceu em 1974, aceitando ser ordenado
padre apenas sete anos depois.
Já nessa
altura se sentia atraído pela questão da linguagem e da palavra. Em
outra entrevista ao PÚBLICO, em 13 de Janeiro de 2001, dizia que “o
primeiro grau de proximidade dos seres, o que nos liga, é a palavra”.
Perto de
Umberto Eco
Em Lyon,
França, frequentou um curso de Semiótica e estudou a Bíblia com o método
estruturalista. Passou por várias escolas francesas, acabando a fazer
uma pós-graduação na UNL, onde leccionava Semiótica, E-Textualidades e
Hiperficção e Cultura. Por ali ficou, acabando como professor associado
com agregação.
Nos
últimos anos, dirigiu a Revista de Comunicação e Linguagens. Era também
membro do comité executivo da Associação Internacional de Estudos
Semióticos e de várias instituições académicas portuguesas e
internacionais. Nos dominicanos, presidiu ao Instituto São Tomás de
Aquino. E, o ano passado, integrava o Secretariado Nacional da Pastoral
da Cultura, da Igreja Católica.
Entre
outras obras, publicou A visão de Túndalo: em torno da semiótica das
Visões (ed. INIC); Sujeito, Paixão e Discurso. Trabalhos
de Jesus (Vega); O fulgor é móvel - Em Torno da Obra de Maria
Gabriela Llansol (Roma); A Palavra e o Espelho (Paulinas) e
Luz Desarmada (Prefácio), que recolhem homilias ligadas ao
calendário litúrgico; e O Nome e a Forma, que reúne a sua poesia.
Daqui a dias, sairá Quem vigia o vento não semeia (Pedra
Angular), com mais um conjunto de homilias.
Co-director do Dicionário Histórico das Ordens e Instituições em
Portugal (Gradiva), José Augusto Mourão traduziu, entre outros
textos, A rosa é sem porquê, de Angelus Silesius, Sobre a
leitura, de Marcel Proust, e A função da poesia, de Jerónimo
Savonarola (todos na Vega).
Temas
como o sujeito, a estética ou o sofrimento estão muito presentes na sua
obra, que abrange uma grande diversidade de objectos de análise: ciência
e religião, o corpo, a literatura, a Internet, o hipertexto são o mote
para dezenas de artigos ou abordagens, quer nas suas obras, quer nos
textos do site http://triplov.org/. “A rede é uma procura,
virtual que seja, multicultural, de encontro com o outro.” Defendia, na
entrevista de 2001, que são necessários “net-monges”, mas alertava: “Há
uma ilusão de liberdade dentro da Internet, não estamos nada libertos da
aranha global que é a censura.”
“Estava
mais perto de Umberto Eco”, diz Maria Augusta Babo. “Pela diversidade de
abordagens, já que a semiótica tende a considerar que todo o objecto e
todo o mundo envolvente são passíveis de ser lidos”.
Era um
pensamento aberto, que recusava, como ele escrevia, o silenciamento das
“vozes dissonantes”. Ou a “servidão” e a “bajulação, que são as
passadeiras do poder”. E que entendia a dimensão estética como
fundamental. Aliás, sobre a sua poesia, escreve José Tolentino Mendonça,
outro padre-poeta: “A profecia não tem apenas uma dicção ética e social.
Ela formula-se também como estética. Na sua intransigente solidão, José
Augusto Mourão tem representado o aguilhão e o vislumbre, o combate e a
dança, pois é um lugar profético a margem donde nos fala.”
Essa
dimensão da estética levava-o a desejar que os fiéis estivessem “de
corpo presente” nas missas: “O corpo não está” na liturgia, afirmava, na
entrevista a Maria João Seixas. E defendia a atenção às homilias, às
orações, aos cânticos, ao espaço da celebração: “A Palavra de Deus é
muito mais radical do que todas as outras e, para ser ouvida, precisa de
mediações como as homilias, como a alegria e a beleza dos cânticos, como
a géstica e os rituais.” E referia o exemplo de “comunidades quentes”
como a dos monges de Taizé, em França, onde a liturgia é “a mais emotiva
e a mais bela”.
Antes de
morrer, José Augusto Mourão doou o seu corpo à investigação médica. No
texto “Requiescant in pacem”, (“Descansem em paz”, em http://triplov.com/semas/2009/Finados.
html), escreveu: “Morrer (...) é exilar-se, romper a ligação com os
amigos, uma partida para uma outra morada, uma outra economia.”
Nos
últimos tempos de vida, apesar da doença, agradecia a todos os que o
visitavam. No poema de questão em questão, diz: “Conduz-nos,
Deus,/ de questão em questão,/ de fogo em fogo,/ sem satisfações que ao
tempo bastem / e a nós assombrem.” |