JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, op
(UNL-DCC)

Testemunhar do esquecimento

1. É para resgatar do esquecimento, esse predador do tempo, “o esquecimento que enterra as nossas memórias” (Confissões X, XVI, 25) que as Actas do congresso sobre os Dominicanos em Portugal, realizado em 2006, vêm à luz. Pela mão de vários pesquisadores foi possível reencontrar e reconhecer aquilo que se julgava perdido: “Este objecto estava perdido para os olhos: retinha-o a memória” (X, XVIII, 27). É a memória que testemunha do esquecimento. Mas é a escrita que lhe assegura a perenidade. Por dom vosso e pela mão generosa e paciente da Ana Cristina Costa Gomes e do Eduardo Franco.

“C'est toujours pour un désir qu'on lutte et qu'on meurt”. (Jacques Lacan)

“Motivare è mettere in moto. L'appartenenza è una condizione statica, l'affidarsi è passionale e dinamico”. (Paolo Fabbri)

“Car on rencontre aussi la complicité de tout ce qui, en autrui, est également ami de la vérité. Les armes de lumière se trouvent des alliés en ceux-là mêmes qu’elles affrontent”. (Yves Congar)

2. Tal como Robinson Crusoé que descobre na praia os traços de uma marca sobre a areia, o historiador, face ao mar, sabe que o outro passou; mas sabe, por outro lado, que não voltará. A partir da traça precária desta ausência começam o seu desejo e o seu trabalho de escrita: a tarefa, sempre a recomeçar dos bordos do presente, da “operação historiográfica”, tomada, ela também, entre a voz (que se calou) e a escrita (que se traça em silêncio) (F. Hartog, L’écriture du voyage: 129). A memória é cognitiva e passional. Pode mesmo ser uma “mãe abusiva e abortiva” se não abre ao futuro. E esquecer é então um bem para o coração e a cabeça. Mas há o dever da memória como um imperativo contra a dissolvência da recordação. Que vale a pena mapear, recordar?

3. Ginzburg estabelece um paralelo entre o cientista e o juiz, indo ao encontro da intuição de Hocart : “A evidência – como o índice ou a prova – é uma palavra essencial para o historiador como para o juíz”. ( Girard, 2004, Les origines de la culture: 239). Hocart, por seu lado, adopta o vocabulário dos tribunais: abrir um inquérito, fazer comparecer as testemunhas. Só que, as testemunhas são, neste caso, os mitos. O discurso historiográfico é indicial: o que é pertinente são os modos de enunciação, os tipos de veridicção com que trata aquilo a que compulsivamente chama os “factos”.

4. Estes são os traços do que se pode chamar o trabalho de afectos. “Mas os afectos e o trabalho sobre os afectos são fundamentais. Porque o afecto é uma característica do humano. A vida afectiva caracteriza o humano e portanto dar-lhe maior forma, fazê-la repercutir da melhor maneira possível, é necessário para que tudo cresça.” (Maria Gabriela Llansol in O que é uma figura? Mariposa Azual, 2009, p. 146).

5. Não se trata de proceder à reconstituição de um crime – os Dominicanos tornaram-se aos olhos do vulgo os algozes do atraso cultural português (!) ou da cultura pobre que temos. Fale-se de dominicanos, e logo nos desferem o golpe do Inquisidor que fomos! Como se a isso a memória da História nos reduzisse. Difícil de incorporar o princípio da irredução que se deveria aplicar a todas as disciplinas, e não apenas ao confronto entre ciência e religião, por exemplo, ou ao perfil deste ou daquela disciplina. Nada pode ser reduzido a outra coisa. Não podemos reduzir o delírio de monjas flagelantes a uma frustração sexual? Bruno Latour, que recusa a distinção substância vs acidente, responde com um sim e um não. Esta flagelação é um acontecimento concreto no mundo, tão real como outro qualquer e não pode ser esclarecido como um sintoma hipócrita que mascara a base subjacente à realidade da deriva sexual: “O comportamento das monjas deve certamente ter uma explicação que difere da sua própria da sua própria apreciação disso” (Graham Harman, Prince of Networks. Bruno Latour and Metaphysics, re-press Melbourne 2009, p. 18). Neste sentido, um teórico não é diferente de um engenheiro que escava um túnel no Marão. O engenheiro deve negociar com a montanha a cada passo do projecto, testar até que ponto a rocha resiste e cede. O mesmo se aplica a um historiador que estudasse as monjas ou, neste caso, os frades pregadores (ibidem, p. 18). Nada é puro cálculo, nada deriva directamente de algo, nada é um intermediário transparente. Difícil escapar ao traço anedótico, à doxa, à paleonímia: o que os tempos antigos deixaram na linguagem e no pensamento.

6. A ligação entre actores exige sempre tradução. Precisamos de alianças e de mediadores. O nosso dever é ser contemporâneos, tradutores (“intercessores” diria G. Deleuze) entre os discursos diferentes e as diversas culturas, não Cruzados. – as primeiras cruzadas chamavam-se “bellum sacrum”. Não cabe à fé fazer as leis. O contemporâneo, diz Agamben, não é apenas aquele que, percebendo a obscuridade do presente, discerne a sua inacessível luz; é também aquele que, através da divisão e da interpolação do tempo, é capaz de o transformar e de o relacionar com outros tempos, de ler a história de uma maneira inédita, de a “citar” em função duma necessidade que nada deve em absoluto nada ao seu arbitrário, mas provém duma exigência à qual não pode deixar de responder. (Agamben, Qu’est-ce que le contemporain? Rivages, 2008, p: 40).

7. «Ninguém morre tão pobre que não deixe qualquer coisa», dizia Pascal. Jean-Luc Marion gosta de repetir que a vida de um filósofo (coisa que não sou) se resume em três verbos: "Nasceu, trabalhou, morreu". Maria Gabriela Llansol dizia: “Eu sinto como a nossa vida é curta, e que o melhor que podemos fazer, para sermos pragmáticos, é deixar o maior número possível de vestígios certos. Deixemos vestígios. Não há outro modo de fazer. Depois há a invisibilidade que opera. Há outros modos de invisibilidade, mas ao nível do mundo humano são os vestígios.” (O que é uma figura? Mariposa Azual, 2009, p. 147).

8. À ideia de obra sempre preferirei a de perspectiva atmosférica ou de travessia. Preferirei sempre a atitude do “profanador” de coisas admitidas consensualmente como “sagradas” à atitude do fabricador imediato de opiniões para o tempo presente (que distingue o grande comunicador). A “libido sciendi”, a “curiosidade estudiosa” de que S. Tomás fala, durativa e iterativa têm sido o meu bordão. Gosto da ideia de um gabinete com um jardim à volta. De resto, não é a cultura o aumento do ser, comum à planta e ao espírito? E sempre detestei o fausto das cerimónias, os emblemas do poder que alguns atam ao pescoço, outros às fardas. Não há reino e glória sem efeitos destruidores de trevas e de opressão.

9. Toda a homenagem lembra a morte. Ou difere-a. Alberto Giacometti dizia que “on ne voit une personne dans son ensemble que lorsqu’elle s’éloigne et qu’elle devient minuscule” (A. Giacometti, Je ne sais ce que je vois qu’en travaillant, L’èchoppe, 1993, p. 10). Podemos ter duas atitudes filosóficas a respeito da morte: a primeira é existencialista: se a minha morte é um fim, a essência do meu trabalho compreender-se-á por pressuposição a partir desse fim; há uma outra perspectiva: a morte é a interrupção dum projecto que outros podem prosseguir. A primeira acepção é Heidegger, a segunda, Marc Bloch. Há um caminho a andar: “qualquer forma de vida – com a sua estesia e estética, valências e valores, crenças e paixões – se destaca de um fundo de uma outra que a rotina automatizou.” (Paolo Fabbri, “L'effegie et l'effetto”, 2005). A advertência é sensata: para romper com a redundância das práticas e dos programas, das sensações e do sentido é preciso pôr-se a caminho.

10. Conta-se que um dia pediram a Picasso para pintar o retrato dum comerciante. Ele aceitou com a única condição que o seu cliente apenas o visse quando totalmente acabado. Quando terminou, mostrou o retrato ao comerciante. Como este manifestasse o seu espanto, Picasso tocou-lhe no ombro dizendo-lhe: “E agora, meu amigo, só vos falta parecer-vos com ele”. E termino com uma carta de C. Simon ao seu amigo J. Dubuffet: “Á saída de um curso que tinha dado no Colégio de França sobre os meus romances, disse a Merleau-Ponty: “Ce Claude Simon dont vous avez parlé, qu'est-ce qu'il doit être intelligent? à quoi il (Merleau-Ponty) a répondu: “Oui, mais ce n'est pas vous: c'est le personnage que nous suscitons seulement par le travail.” Este “personagem”, que não é a pessoa física, é a instância de origem do discurso, o autor, aquele cujo nome está inscrito na página dum livro ou, num domínio conexo, que assina uma tela, uma escultura, ou uma partitura. O autor transcreve, voluntariamente ou não a sua experiência do mundo, isto é dos objectos e das pessoas, como o pintor “traduz o texto” da natureza (expressão de Cézanne) no texto da tela.

11. Vivemos com ficções, o “como se” de Kant. Até neste contexto, somos eticamente chamados a ser kantianos. Digamos que o aqui foi dito do fulano aqui evocado é apenas ficção.