2. Tal como Robinson Crusoé que descobre na praia os
traços de uma marca sobre a areia, o historiador, face ao mar, sabe que
o outro passou; mas sabe, por outro lado, que não voltará. A partir da
traça precária desta ausência começam o seu desejo e o seu trabalho de
escrita: a tarefa, sempre a recomeçar dos bordos do presente, da
“operação historiográfica”, tomada, ela também, entre a voz (que se
calou) e a escrita (que se traça em silêncio) (F. Hartog, L’écriture du
voyage: 129). A memória é cognitiva e passional. Pode mesmo ser uma “mãe
abusiva e abortiva” se não abre ao futuro. E esquecer é então um bem
para o coração e a cabeça. Mas há o dever da memória como um imperativo
contra a dissolvência da recordação. Que vale a pena mapear, recordar?
3. Ginzburg estabelece um paralelo entre o cientista e o juiz, indo ao
encontro da intuição de Hocart : “A evidência – como o índice ou a prova
– é uma palavra essencial para o historiador como para o juíz”. ( Girard,
2004, Les origines de la culture: 239). Hocart, por seu lado, adopta o
vocabulário dos tribunais: abrir um inquérito, fazer comparecer as
testemunhas. Só que, as testemunhas são, neste caso, os mitos. O
discurso historiográfico é indicial: o que é pertinente são os modos de
enunciação, os tipos de veridicção com que trata aquilo a que
compulsivamente chama os “factos”.
4. Estes são os traços do que se pode chamar o trabalho de afectos. “Mas
os afectos e o trabalho sobre os afectos são fundamentais. Porque o
afecto é uma característica do humano. A vida afectiva caracteriza o
humano e portanto dar-lhe maior forma, fazê-la repercutir da melhor
maneira possível, é necessário para que tudo cresça.” (Maria Gabriela
Llansol in O que é uma figura? Mariposa Azual, 2009, p. 146).
5. Não se trata de proceder à reconstituição de um crime – os
Dominicanos tornaram-se aos olhos do vulgo os algozes do atraso cultural
português (!) ou da cultura pobre que temos. Fale-se de dominicanos, e
logo nos desferem o golpe do Inquisidor que fomos! Como se a isso a
memória da História nos reduzisse. Difícil de incorporar o princípio da
irredução que se deveria aplicar a todas as disciplinas, e não apenas ao
confronto entre ciência e religião, por exemplo, ou ao perfil deste ou
daquela disciplina. Nada pode ser reduzido a outra coisa. Não podemos
reduzir o delírio de monjas flagelantes a uma frustração sexual? Bruno
Latour, que recusa a distinção substância vs acidente, responde com um
sim e um não. Esta flagelação é um acontecimento concreto no mundo, tão
real como outro qualquer e não pode ser esclarecido como um sintoma
hipócrita que mascara a base subjacente à realidade da deriva sexual: “O
comportamento das monjas deve certamente ter uma explicação que difere
da sua própria da sua própria apreciação disso” (Graham Harman, Prince
of Networks. Bruno Latour and Metaphysics, re-press Melbourne 2009, p.
18). Neste sentido, um teórico não é diferente de um engenheiro que
escava um túnel no Marão. O engenheiro deve negociar com a montanha a
cada passo do projecto, testar até que ponto a rocha resiste e cede. O
mesmo se aplica a um historiador que estudasse as monjas ou, neste caso,
os frades pregadores (ibidem, p. 18). Nada é puro cálculo, nada deriva
directamente de algo, nada é um intermediário transparente. Difícil
escapar ao traço anedótico, à doxa, à paleonímia: o que os tempos
antigos deixaram na linguagem e no pensamento.
6. A ligação entre actores exige sempre tradução. Precisamos de alianças
e de mediadores. O nosso dever é ser contemporâneos, tradutores
(“intercessores” diria G. Deleuze) entre os discursos diferentes e as
diversas culturas, não Cruzados. – as primeiras cruzadas chamavam-se
“bellum sacrum”. Não cabe à fé fazer as leis. O contemporâneo, diz
Agamben, não é apenas aquele que, percebendo a obscuridade do presente,
discerne a sua inacessível luz; é também aquele que, através da divisão
e da interpolação do tempo, é capaz de o transformar e de o relacionar
com outros tempos, de ler a história de uma maneira inédita, de a
“citar” em função duma necessidade que nada deve em absoluto nada ao seu
arbitrário, mas provém duma exigência à qual não pode deixar de
responder. (Agamben, Qu’est-ce que le contemporain? Rivages, 2008, p:
40).
7. «Ninguém morre tão pobre que não deixe qualquer coisa», dizia Pascal.
Jean-Luc Marion gosta de repetir que a vida de um filósofo (coisa que
não sou) se resume em três verbos: "Nasceu, trabalhou, morreu". Maria
Gabriela Llansol dizia: “Eu sinto como a nossa vida é curta, e que o
melhor que podemos fazer, para sermos pragmáticos, é deixar o maior
número possível de vestígios certos. Deixemos vestígios. Não há outro
modo de fazer. Depois há a invisibilidade que opera. Há outros modos de
invisibilidade, mas ao nível do mundo humano são os vestígios.” (O que é
uma figura? Mariposa Azual, 2009, p. 147).
8. À ideia de obra sempre preferirei a de perspectiva atmosférica ou de
travessia. Preferirei sempre a atitude do “profanador” de coisas
admitidas consensualmente como “sagradas” à atitude do fabricador
imediato de opiniões para o tempo presente (que distingue o grande
comunicador). A “libido sciendi”, a “curiosidade estudiosa” de que S.
Tomás fala, durativa e iterativa têm sido o meu bordão. Gosto da ideia
de um gabinete com um jardim à volta. De resto, não é a cultura o
aumento do ser, comum à planta e ao espírito? E sempre detestei o fausto
das cerimónias, os emblemas do poder que alguns atam ao pescoço, outros
às fardas. Não há reino e glória sem efeitos destruidores de trevas e de
opressão.
9. Toda a homenagem lembra a morte. Ou difere-a. Alberto Giacometti
dizia que “on ne voit une personne dans son ensemble que lorsqu’elle
s’éloigne et qu’elle devient minuscule” (A. Giacometti, Je ne sais ce
que je vois qu’en travaillant, L’èchoppe, 1993, p. 10). Podemos ter duas
atitudes filosóficas a respeito da morte: a primeira é existencialista:
se a minha morte é um fim, a essência do meu trabalho compreender-se-á
por pressuposição a partir desse fim; há uma outra perspectiva: a morte
é a interrupção dum projecto que outros podem prosseguir. A primeira
acepção é Heidegger, a segunda, Marc Bloch. Há um caminho a andar:
“qualquer forma de vida – com a sua estesia e estética, valências e
valores, crenças e paixões – se destaca de um fundo de uma outra que a
rotina automatizou.” (Paolo Fabbri, “L'effegie et l'effetto”, 2005). A
advertência é sensata: para romper com a redundância das práticas e dos
programas, das sensações e do sentido é preciso pôr-se a caminho.
10. Conta-se que um dia pediram a Picasso para pintar o retrato dum
comerciante. Ele aceitou com a única condição que o seu cliente apenas o
visse quando totalmente acabado. Quando terminou, mostrou o retrato ao
comerciante. Como este manifestasse o seu espanto, Picasso tocou-lhe no
ombro dizendo-lhe: “E agora, meu amigo, só vos falta parecer-vos com
ele”. E termino com uma carta de C. Simon ao seu amigo J. Dubuffet: “Á
saída de um curso que tinha dado no Colégio de França sobre os meus
romances, disse a Merleau-Ponty: “Ce Claude Simon dont vous avez parlé,
qu'est-ce qu'il doit être intelligent? à quoi il (Merleau-Ponty) a
répondu: “Oui, mais ce n'est pas vous: c'est le personnage que nous
suscitons seulement par le travail.” Este “personagem”, que não é a
pessoa física, é a instância de origem do discurso, o autor, aquele cujo
nome está inscrito na página dum livro ou, num domínio conexo, que
assina uma tela, uma escultura, ou uma partitura. O autor transcreve,
voluntariamente ou não a sua experiência do mundo, isto é dos objectos e
das pessoas, como o pintor “traduz o texto” da natureza (expressão de
Cézanne) no texto da tela.
11. Vivemos com ficções, o “como se” de Kant. Até neste contexto, somos
eticamente chamados a ser kantianos. Digamos que o aqui foi dito do
fulano aqui evocado é apenas ficção. |