A cultura é uma invenção do homem para
curar o medo diante do aspecto primário da vida, aquilo a que Ortega
chama a selva em que reina Pan. O homem inventou os seus mitos, o seu
mundo de formas para tentar preservar a unidade do que está em baixo e
do que está em cima, aquilo a que Raimundo Lúlio chama o “omnia in unum”.
Já os pré-socráticos elaboram a primeira teologia racional, assimilando
Deus com a Causa primeira, Causa entendida ainda como Causa material: a
Água de Tales, o Fogo-Logos de Heraclito, o Ar de Anaximandro e de
Diógenes de Apolónia (cf. As Nuves de Aristófanes). No século V a
teologia é já uma ciência, como se pode ver em Platão e particularmente
no Timeu ou nas Leis (1. X). Esta teologia vem ligada a um
sistema astronómico e a uma doutrina do movimento: a demonstração da
existência de Deus é um exercício da razão pura que pode e deve
transformar-se em piedade, mas que, em si mesma, é da ordem da ciência e
não da religião.
Já se disse que a religião era
uma ilusão, uma ficção que salva. Recentemente, Dawkins, o biólogo que
escreveu “O Gene Egoísta” ou “O Relojoeiro Cego”, escreveu “The God
Delusion” que é uma defesa do ateísmo. Um desastre, porque presta um mau
serviço à reflexão sobre a lugar da religião na sociedade contemporânea
e à reflexão sobre a legitimidade epistémica e ética das crenças
religiosas. Há, fundamentalmente duas visões da ciências: uma visão
cientista e uma visão pragmática. A ciência é cientificamente
justificável mas moralmente neutra, por isso a qualidade da ciência nada
diz da sua qualidade moral. A ciência tem um pressuposto moral favorável
porque ela é a verdade e que a verdade é melhor que o obscurantismo. O
que divide os que acreditam no céu e os que não acreditam nele. Claro
que podemos separar o sagrado do profano e restituir as coisas ao
profano. O “sagrado” subtrai-se ao uso que fazemos das coisas, quando
compramos, vendemos, emprestamos, damos, pomos ao serviço de. Aquilo que
é “consagrado” está fora do direito humano. Já aquilo que é profano é
algo que foi restituído “ao livre jogo dos homens” (Agamben). Até pode
acontecer que as escolas religiosas sejam intoleráveis porque produzem
estranheza e ódios religiosos. Perguntar o que distingue a crença em
Deus da crença nos OVNIS é não saber que a crença e o saber não são a
mesma coisa. Mas nada justifica hoje o encarniçamento de um resto que se
diz ateu (M. Onfray). Perguntaram a R. Girard como se pode acreditar na
ciência e em Deus ao mesmo tempo. Ele respondeu assim: “Acreditar em
Deus não implica rejeitar a objectividade. A minha crença em Deus faz de
mim um crente na objectividade de mundo. O que quero dizer é que no que
toca às questões ditas importantes, opero ainda no quadro duma
epistemologia tomista, que considera as coisas como reais e vê Deus como
o garante desta realidade. Eu vejo as obras literárias como reflexões
sobre as verdadeiras relações que têm curso na sociedade, e utilizei-as
como instrumentos de observação científicos”[1].
O domínio do saber científico
não elimina os velhos mitos que nos contam o começo das coisas e dos
seres. Nota-se, porém, que o pensamento religioso de Israel, mesmo
comportando vestígios de cosmovisões vizinhas, se desvia do seu
imanentismo de base, tido como idolátrico. O Deus de Israel não tem um
rosto do mundo, embora Deus só seja Deus na relação com o criado (M.
Eckhart), o Deus de Israel é, “não um rosto do mundo, mas o mundo como
rosto” (Remi Brague). A posição de Leão XIII, na Providentissimus
Deus (1894) é a mesma que assumirá João Paulo II: verdade
escriturística e verdade científica não podem contradizer-se; se a
Bíblia parece contradita pela ciência, é porque foi mal interpretada;
não é ela que é posta em causa mas uma das suas interpretações. Por trás
desta questão estão Tomás de Aquino e Averróis. De resto, João Paulo II
na Fides et Ratio lamenta as interferências das autoridades
religiosas no curso do desenvolvimento do conhecimento científico.
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José Augusto Mourão, dominicano, escritor, é professor na Universidade Nova de Lisboa, co-director do CICTSUL - Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa, presidente do ISTA - Instituto S. Tomás de Aquino, e coordenador do TriploV. |