Entre a religião e a ciência permanece um
diferendo antigo, uma divergência radical na apreciação do que é o ser
verdadeiro do homem. A ciência diz o que seremos. A verdade do
cristianismo é irredutível à da ciência. A vida é um movimento
caracterizado pelo Dom de si ou a “doação” que fica fora de qualquer
objectivação. A ciência - e em particular a biologia – nada sabe desta
doação. O cristão não é filho de uma biológica que não existe, mas
apenas da vida fenomenológica absoluta que é a essência de Deus. É desta
Vida invisível que o homem é o Filho. O cientista do físico Michael
Polany aproxima-se de um perito, no sentido inglês de connoisseur,
e a sua competência é inseparável de um empenhamento (commitment),
que implica a inteligência, mas também os gestos, a percepção, a paixão
e a crença (Polany, 1951). É contra J. D. Bernal, um cientista marxista,
que Polany funda, no início da guerra uma “Society for Freedom in
Science”. A ciência não é imune a derivas de toda a espécie que decorrem
de relações de força, de jogos de poder claramente sociais, de
diferenças de recursos e de prestígio entre laboratórios em competição,
das possibilidades de alianças com interesses “impuros”, ideológicos,
industriais, estatais, etc. As intromissões no domínio não científico de
explicações científicas observa-se amiúde. A Time publicou um
texto sobre a biologia da crença (visão 19 de fevereiro de 2009).
“Se alguma vez rezou com tanta veemência que perdeu todo o sentido do
mundo, isso aconteceu por causa do seu lóbulo parietal ter entrado em
acção...o hipotálamo tem um papel a desempenhar, tal como os lóbulos
frontais. Mas é o lóbulo parietal, uma massa central de tecido
encarregada de processar as entradas sensoriais, que provoca o maior
efeito transportador”. Existem indícios científicos de que a fé pode
realmente curar. Religião e ciência estão sempre em disputa mas
concordam cada vez mais numa coisa: a espiritualidade pode ser boa para
a saúde. O efeito placebo é uma espécie de magia curativa. Se dermos a
um doente um comprimido de açúcar, mas dissermos que é um analgésico, a
dor pode realmente desaparecer. A medicina e a religião partilham pelo
menos um traço: ambas podem ser vistas como reacção à perspectiva da
morte. Mas enquanto a ciência nada diz sobre uma possível vida no além,
as práticas religiosas são formuladas pela sua concepção desse
território por descobrir. Sobretudo, “A religião e a ciência tratam
diferentes preocupações”, diz Richard Sloan, autor de Blind Faith:
The Unholy Alliance of religion and Medicine. É verdade: as
ciências, a nanotecnologia em particular, põem o homem em perigo. O
movimento criacionista ilustra bem uma das facetas do tema “ciências e
laicidade”. Vê-se mal a pertinência do relatório pedido pelo Conselho da
Europa a uma das comissões sobre os problemas das ciências e do seu
ensino face à emergência dos movimentos criacionistas. Para quê outra
cruzada, depois daquela que os meus infelizes irmãos levaram a cabo no
caso Galileu? O medo é abortivo. Um dogma é como um lampadário: no
escuro, pode servir de ponto de referência para ir explorar as zonas
mais obscuras; pode também permitir ao bêbado aguentar-se de pé
agarrando-se a ele. As religiões fundam-se em dogmas e estão
particularmente ameaçadas pelo dogmatismo. Também as ciências. “O
cientista”, escreve I. Stengers, “já não é, ao mesmo título que qualquer
outro humano, o produto de uma história social, técnica, económica e
política, mas tira activamente proveito dos recursos do ambiente com a
finalidade de fazer prevalecer as próprias teses e esconde as
próprias estratégias sob a máscara da objectividade...O cientista, aqui,
em vez de se privar heroicamente de qualquer recurso à autoridade ou ao
público, surge acompanhado por uma coorte de aliados, de todos aqueles
cujo interesse conseguiu criar uma diferença nas controversas que o opõe
aos próprios rivais”.
O “princípio de irredução” é uma precaução e uma exigência, que I.
Stengers enuncia como a passagem do “isto é isto” ao “isto não é mais do
que isto” ou ao “é somente isto”. Este princípio prescreve um
distanciamento em relação à pretensão de saber e de julgar. Os
religiosos e os cientistas correm o risco de se tornar sábios, não os
cobrisse a aura e a autoridade que lhe creditam as nossas sociedades. O
próprio do ser humano é escolher ser humano: “à lui de choisir entre le
Royaume et les ténèbres”.
Que concluir? “Não precisamos de comunicação, temos até demasiada,
carecemos de criação. Precisamos de resistência ao presente” (Deleuze,
Guattari, 1989: 104). Precisamos de um “Parlamento das coisas” (B.
Latour) em que J.P. Changeux ou D. Cohen possam representar as
populações dos neurónios interconexos ou ou genoma humano, mas em que se
sentem também os representantes da mística, do Inconsciente, das
ciências “ambulantes” que não associam ciência e poder, dos processos
heterogéneos, que não se confundem com a formação de guetos. Há o lobo
destruidor, mas há outros lobos possíveis, implicados em outras
histórias. Todo o discurso é de religação, razão, comunicação. A
racionalidade tradicional que afecta a prática científica e não só, é
essencialmente monológica, assente numa relação dialógica distorcida,
“pseuso-simétrica” (Watzlawik e tal., 1972: 65ss). O discurso da
ciência, porque dotado de protocolos de leitura específicos, corre o
risco do monologismo, e que é uma doença da comunicação. No fundo, o
monólogo é um diálogo não-interactivo. Exige a presença de um
enunciatário, mas invalida-o como alter ego da troca enunciativa.
Ora, a “bondade” e a “justiça” da ciência devem ser permanentemente
questionadas, e por uma razão simples: “A ciência está (desde há um
século) tão perto de nós que nos esmaga. O que nós precisamos é da
distância vital certa para conseguirmos novamente um afastamento que nos
permita compreender o que se passa connosco, homens. Ninguém sabe isso
hoje. Por isso, todos temos de perguntar e continuar a perguntar para o
saber. Voltar a aprender a perguntar”.
Contra o parecer de Eça que dizia das Luzes e das plebes: “O grande erro
da nossa civilização” teria consistido na “extrema democratização da
Ciência”, no “seu universal e ilimitado derramamento através das
plebes”; a ciência deveria ser recolhida, como outrora, aos santuários”.
Nos tempos de Fradique, é já toda a ciência que, a não ser administrada
por um sacro colégio, pode desencaminhar as plebes e arruinar a saúde
moral das sociedades.
O mundo técnico unidimensional tenta impor-se como a única interpretação
da realidade. Ora, com que direito pode uma forma de doxa
reprimir uma outra? Como sensibilizar o auditório universal dos homens
de boa vontade para a razão ou o interesse dominante, sem suspeitar da
vontade de poder da parte dos Destinadores? Falta-nos a utopia da
intersubjectividade “em que cada qual “se pronuncia” sobre um
“quase-objeto que todos criaram”, mas que é representado de modo
legítimo somente pela associação dispare das práticas mediante as quais
foi criado e que a todos religa” (Stengers, 2000: 185). Falta-nos um
humanismo serenamente antropocêntrico, que qualifica o movimento que
consiste em dilatar o homem até às dimensões do mundo e a concentrar o
mundo até às dimensões do homem. E não é essa também a pretensão das
ciências?
José Augusto Mourão (UNL/ISTA) |