O Homo sapiens, a
espécie a que todos pertencemos, é produto do acaso de milhões de anos
de evolução, ou é uma criatura de Deus, cujo aparecimento é relatado no
livro do Génesis? Passados 150 anos sobre a apresentação da teoria da
evolução, cresce o número dos que preferem a narrativa do Génesis.
Apesar de a teoria da evolução se ter transformado numa pedra basilar do
cânone da ciência e da cultura, continua a ser contestada por uma parte
importante da população, incluindo o Islão[1].
Stephen Jay Gould dizia que a resistência do chamado “criacionismo” era
uma controvérsia localizada e americana, como o Tio Sam ou a tarte de
maça. Há em Seattle o Instituto Discovery, defensor da “concepção
inteligente” (uma versão light do criacionismo): o Universo é
demasiado complexo para não ter um criador inteligente. O Conselho da
Europa emitiu uma declaração em Outubro de 2007 com este título: “Os
Perigos do Criacionismo na Educação”.
Como se vê, o movimento criacionista
tem um poder político real. “Julgada a partir do modelo
teórico-experimental, pode perguntar-se se a biologia darwiniana será
deveras uma ciência”. A questão é levantada por uma filósofa das
ciências, Isabelle Stengers. O “adaptacionismo panglossiano” (Gould) diz
que “Tudo é pelo melhor no melhor do mundo”. Todo o rasgo do vivente
deve ser ou foi útil, pois a sua utilidade é que explica a selecção,
dizem os neodarwinistas. Pelos vistos, os criacionistas americanos não
se enganaram quando a atacaram e não à astronomia, como fez a Igreja no
tempo de Galileu. “Não se revelaram, porventura, vazios de poder
explicativo a priori, os grandes conceitos aparentemente explicativos –
adaptação, sobrevivência do mais apto, etc. – simples palavras que
intervêem para comentar uma história já depois de reconstituída?”.
A principal inovação de Darwin foi, sem dúvida, sustenta a autora que
estou a seguir, a invenção da história do ser vivo enquanto história
lenta, “deriva”, dizia, porquanto desprovido do motor que
teria constituído uma capacidade intrínseca de adaptação própria da vida
ou a hereditariedade dos caracteres adquiridos proposta por Lamarck. Os
instrumentos do naturalista dão-nos a possibilidade de reunir
indícios que o guiarão na tentativa de reconstituir uma situação
concreta, de identificar relações e não representar o fenómeno como
função munida de variáveis independentes.
As ciências da prova não são as ciências do indício. A incerteza é o
húmus das ciências de campo. O que um campo permite afirmar pode ser
contradito por outro, sem que um dos dois testemunhos seja falso.
Afinal, os “evolucionistas” ainda não conseguem narrar-nos como se
criou o olho; mas conseguiram fazer a história dos seres vivos de um
modo que reinventa o olhar que sobre eles lançamos”.
O aniversário dos 200 anos do nascimento
de Charles Darwin fez aparecer na opinião pública uma polémica entre
criacionismo e evolucionismo, vistos muitas vezes como opostos e
excludentes, quando não é assim, afirma o arcebispo de São Paulo. «A
criação não exclui a evolução, nem o contrário», destaca o cardeal, em
artigo publicado na edição desta semana do jornal arquidiocesano «O São
Paulo» (18 de fevereiro de 2009) (ZENIT.org)
Segundo o arcebispo, «a evolução é um fato evidente e não pode ser posta
em dúvida; porém, se ela explica como as coisas se diferenciam e mudam,
por diversos factores, ela, contudo, não explica a origem absoluta
dessas coisas». «É um facto que somente evolui e se transforma aquilo
que já existe. Donde, ou de quem cada ser recebeu a existência e a ordem
interna para ser aquilo que é, e não outra coisa?» «Do nada? – prossegue
Dom Odilo –. Do nada, nada surge, a não ser que algum agente “crie”,
isto é, dê origem, tire do nada e faça existir algo. O acaso poderia ser
este factor determinante? Como seria inteligente este acaso! A teoria do
acaso é absurda. É melhor crer
em Deus criador, isso não é absurdo.» O arcebispo, que certamente não
leu J. Monod, afirma que a evolução «explica “como” as coisas chegaram a
ser aquilo que são, mas não explica o fato mesmo da existência das
coisas, nem sua ordem interna e seu significado».
De acordo com Dom Odilo, também a hipótese da “explosão inicial” (Big
bang), para explicar a origem do universo, «poderia ser apenas uma
explicação parcial».
«É preciso explicar como
passou a existir anteriormente um “algo”, que pudesse explodir; e
explicar também a existência de uma lógica maravilhosa na origem do
universo, que foi capaz de organizá-lo e de torná-lo a maravilha que ele
é, em vez de ser o caos infinito e permanente.»Decididamente – prossegue
o cardeal Scherer –, a evolução «também não explica a própria existência
do universo». «Mas ela, como a ciência no seu todo, procura explicar
“como” as coisas existem, são feitas, funcionam e interagem. E nisso não
precisam estar contra a fé em Deus; nem precisa a fé em Deus negar a
ciência. O verdadeiro cientista também pode ser profundamente religioso»,
afirma. Dom Odilo explica que neste debate ressurge a questão antiga da
relação entre fé e razão, entre ciência e religião.
«Trata-se de duas formas diversas de
aproximação da realidade: a razão requer argumentos controlados por ela
e convincentes para ela mesma; daí decorre o conhecimento científico
moderno, que submete tudo ao seu método próprio e verifica a
possibilidade de comprovar, com instrumentos que lhe são próprios, as
afirmações sobre as realidades deste mundo”.«Aquilo que o método
científico não verifica e comprova, também não pode ser afirmado pela
ciência; mas seria falso concluir logo: portanto não existe. De sua
parte, o conhecimento pela fé «faz afirmações baseando-se na revelação
divina e vai além daquilo que a ciência pode controlar.
A fé não é contra a ciência,
mas vai além da ciência». «Não é
preciso abandonar a fé em Deus criador para aceitar o fato da evolução,
que faz parte da sabedoria criadora de Deus; é um dinamismo interno nas
coisas, que faz com que o mundo não seja estático e morto, mas cheio de
vitalidade, esperança e futuro», afirma o arcebispo. É um facto: Darwin
abalou para sempre a ideia de ordem e de medida com que lidavam os
teólogos, envoltos em visões físicas e metafísicas fixistas. O acaso
entrou não apenas em biologia, mas também na filosofia do ser vivo[6].
Os princípios da teologia natural têm pela frente os difíceis problemas
da contingência, da selecção e da finalidade. Mas Deus não pode ser nem
confundido com o criado ou com leis deterministas nem separado delas: a
criação é uma relação de origem entre Deus e as suas criaturas, relação
de aliança marcada pela liberdade. Na teologia cristã Deus criou
livremente o mundo e por amor (autocomunicação do bem): creatio ex
amore Dei. Amor extático que o leva a sair de si mesmo e a criar. A
teologia do “processo” rejeita a ideia da criação ex nihilo
porque se afirma a partir do caos (eterno como Deus)[7].
Central no NT é a aclamação de Jesus como cosmocrator: (Fil
2,6-11; Is 45, 23; Col 1, 15-20; Rm 1, 3-4). Cristo é agente da criação
em termos de (ta panta). Ele é o arché, o pleroma –
fórmula helenística judaico/cristã – e a reconciliação de todas as
coisas (ta panta). A criação consiste na transformação do caos em
cosmos. O livro do Génesis não conhece ainda a ideia de criação no
sentido estrito, i.é., criação ex nihilo. O conceito ex nihilo
contradiz claramente a lei da conservação da massa e energia: é
impossível criar algo do nada. Dizer que Deus criou num só dia o céu
contraria os números da ciência que falam de 15 biliões de anos. A
escuridão não é uma substância, mas uma ausência de luz. A expressão
hebraica tohû-wabohû é proverbial para exprimir a confusão e a
desolação (Is 34, 11; Je 4m 23). Tohû designa o deserto sem
caminho, inabitável, enquanto bohû marca o vazio, evocando o
caos. Repare-se que o caos tem o mesmo nome em Gn 1,2 e no Enuma
Elich. De facto, o nome hebraico teom/abismo (Gn1,2) é o
correspondente exacto, etimológico e semântico, do nome acádico Tiamat. |