1. Um
livro é uma árvore de palavras, um arbusto, um rizoma, não uma árvore de
signos. Um livro de textos-para-rezar é um ambo, um propulsionador, que
solicita e cria espaços para a busca da “troca verdadeira”. Ler, aqui, é
reconhecer-se no Dizer, que não é comunicação de um dito, sim uma
maneira de se entregar[2]. Aí
está O Nome e a Forma, escrito e entregue por vós.
2. Tomar a palavra em face de alguém é
consentir na tensão, doce, viva ou amarga na qual se tece a relação
transferencial. A pessoa é o corpo enquanto surgimento do sujeito da
palavra na carne, aquilo a que se pode chamar a sua presença real. Como
Deus, o sujeito é irrepresentável, qualquer que seja a imagem. Fora
desta relação à palavra no nome, na sequência das gerações, na diferença
sexual, não podemos falar de sujeito vivo e o nome não terá nenhum
sentido. A denominação, para Denis, o pseudo-areopagita, deve manter
Deus fora de qualquer nome próprio, sem cair na presença (Noms divins,
VII, 3, 872). “Le langage a commencé sans nous, en
nous avant nous. C’est ce que la théologie appelle Dieu et il faut, il
aura fallu parler”[3].
3. “Enunciar não é fixar. Enunciar é desenvolver com brevidade
efeitos de imagens, ou de ideias, ou de conceitos, mas é simplesmente
anunciar, não é fixar”, dizia Llansol[4].
A enunciação, o envio da mensagem ou do mensageiro é o que permite
permanecer em presença. Partamos do vinculum, ou seja da passagem e da
relação, não aceitando como ponto de partida nenhum ser que não saia
desta relação. Não partamos nem dos homens, nem da linguagem nem da
comunicação. Partamos da relação definida como uma certa mistura do
mesmo e outro: A é B, é essa a predicação primitiva da filosofia, a
delegação, a passagem, a tradução. O movimento de passagem que mantém a
presença. E a voz, o anjo tutelar, o companheiro inevitável, que se
instala lá onde o sentido está para nascer, na evidência da manhã que
raia, na urgência de uma paixão.
4. O axioma principal de que parto, e que o Pentecostes inaugura, é
este: não há comunicação, só há transformação. É necessária a conversão,
sim. Mas converter-se não consiste em voltar-se sobre uma coisa
intangível a reencontrar, fora da história, ou para a certeza
consoladora de uma imobilidade absoluta, o Ser dos seres, sem roupa, sem
habitat, sem biologia. Como o Dasein de Heidegger,
“thrown into the world but naked that it doesn’t stand much chance of
survival”[5]. Foi assim que,
mal, pintamos as "figuras de Deus". Este "Deus" constante
universal, "substancial", é um artefacto, uma proposição quase
científica. As palavras que põem de pé devem ser compreensíveis. E o
Credo, e a liturgia, estão cheios de palavras que só uma "reserva
mental" aceita sem pestanejar.
5. “Deus é uma pura abstracção, nem eu sei como existe, nem onde
existe, o que é, que atributos tem… E é uma palavra de tal modo
conotada de sentidos estranhos, que se torna uma palavra destruída. Para
mim é uma palavra destruída, já não existe”[6].
Bem nos adverte Bruno Latour quando diz que ao querermos conservar a
nossa herança, a delapidamos. “O sentido perde-se se deixamos de o
colectar, de o recolher – religere diz o latim para falar de religião.
Mas para tal é preciso retomar tudo a zero, dizer as mesmas coisas num
idioma completamente diferente – sim, as mesmas coisas, mas num idioma
completamente diferente”[7].
De que haveríamos de ter medo? “Que tesouro seria esse que para ser
conservado, não deveria nunca ser gasto? Não sabeis o que acontece aos
que acumulam tesouros? De que serve guardar um tesouro? De que serve
acumular fortunas de fidelidade se não podes tirar daí um tostão no
tempo presente em que é preciso viver e falar?”[8]Na
religião, como na ciência há artefactos que é preciso desmantelar. As
palavras que herdei para me introduzir na oração supõem a aquiescência
prévia a uma língua que se me tornou estranha. Não foi o objecto da
oração que desapareceu, é a sua forma que se tornou caduca. Quando se
deixou de traduzir, deixou-se de conservar - foi isso que provocou a
ruína do moinho de palavras. E a ruína da palavra “Deus”.
6. Afinal, não há informação em matéria de religião, não há constantes
a preservar, não há transferência de reacções intactas através da
cascata das transformações. Não há mapa, nem acesso, nem controlo. A
relação de um texto religioso com a coisa de que fala não é a de um mapa
com o território. A informação não utiliza os mesmos veículos, os mesmos
caminhos que as palavras que modificam, que alteram, ou que perturbam.
Para ser fiel há que ser infiel, para reencontrar o sentido é preciso
abandonar a letra, para retraduzir é necessário ousar sacrificar a
antiga tradução; para traduzir de novo é necessário traduzir de novo,
paradoxalmente, trair de novo. Ora, o sentido perde-se, se deixamos de o
recolher - religere. Mas para isso é preciso retomar tudo a zero, dizer
as mesmas coisas num outro idioma. É preciso habituar o ouvido à nova
sonoridade, à tonalidade nova da mesma velha melodia.
7. É preciso tornar actuais e próximas as palavras longínquas e
usadas. Não queiramos, para salvar a religião do fogo da crítica,
metamorfoseá-la num bocejo universal. Querendo conservar, apesar de
tudo, algo desta longa experiência religiosa, perdeu-se tudo. Parece que
a única solução é tudo engolir, tudo calar, tudo aceitar. Como sempre, a
pureza é a tentação suprema a que é preciso resistir. Ou entendemos que
é o Sopro que faz crescer os ramos, e guardamos tudo; ou não o
entendemos e queimamos tudo. Para falar do amor, como para falar de
religião é necessário falar no presente porque o presente difere do
passado.
8. A palavra (que salva) tem de reaprender a batida do "primeiro amor"
ou da "primeira vez", não o ruído do disco partido ou da conversa fiada,
que deixou de ser um "vivo" entre vivos. Como a chuva que bate na janela
numa tarde de inverno e ao som da qual cabeceamos. É entre a forma e o
Sopro que tem o pregador de abrir passagem. Ou não chegará à Páscoa da
palavra. Já o disse noutro lugar: “Sem a reabilitação das camadas
profundas, passivas e sensoriais da comunhão infra e interpessoal, a
liturgia reduz-se a um cerimonial esteticamente frio, impessoal,
logorreico”[9]. A linguagem
religiosa é polifónica. A voz é sempre plural. Não estamos condenados,
nem ao mutismo, nem à teologia negativa. Há modos de falar: “que modos
são esses de falar”? A pergunta, que é uma chamada de atenção, indica
que há modos de falar inconvenientes. A noção de decorum, e de
conveniência indicam uma certa normatividade no interior do mercado
social da linguagem. Há modos de falar a evitar, quer em relação a
pessoas, quer em relação a objectos. Mas há também um falar segundo o
registo do “como se”, que é o modo da ficção. E ficcionar é metaforizar,
que é um modo abdutivo de dizer. Dizer Deus quando a palavra “Deus” é
uma palavra destruída?
9. A analogia é, antes de mais, a contestação da suficiência do logos.
R. Thom diz que toda a analogia é verdadeira. Donde a inevitável
pergunta: Deus é uma metáfora usada, uma catacrese, ou uma metáfora
viva? A questão dos nomes divinos é uma questão clássica na teologia.
Que atributos convêm ou não a Deus? Há denominações que não convêm a
Deus: leão, sol, etc. Por que via nomear o Outro?
10. Os textos paleo-cristãos em prosa, por onde raramente corre o leite
da ternura evangélica, ficam mudos sobre os sentimentos: havia outras
urgências (a moral, a ortodoxia, a polémica) que verbalizar afectos,
cultivar a espiritualidade como uma planta rara. O Pastor de Hermas
preparava os seus leitores à obediência que a sua Igreja esperava dos
seus fiéis; mais do que o amor, a grande palavra era a disciplina, desde
que se tinha entrado na Igreja. E neste regime é a hipercodificação, a
ortololia que ganham.
11. Falar de Deus é interromper o “já dito” e arriscar-se no “dizer”,
que implica a presença àquilo que se diz. O recurso às “autoridades” é
como que suspenso para que seja cada um, a partir do corpo de desejo que
o constitui como sujeito, fale. E falar é expor-se. Autoratitividade é
hoje um conceito utilizado no ciberespaço para designar exactamente a
posição de quem fala, autorizando-se a si próprio a falar.
12. O objectivo da poesia religiosa é relembrar a fé dos começos - o
inter-dito do mistério pascal. É essa a sua objectividade. A sua
característica maior é, porém, a sua fisicalidade. A fé nasce do corpo.
É esse o lugar da subjectividade da palavra. O conhecimento de Deus é
nupcial, para o poeta religioso. A mística anuncia uma sensualética. A
Via Real da razão estética é o corpo e o seu reino, o entusiasmo e o
reconhecimento; por isso a poesia religiosa é de adoração. E é sobretudo
auto-implicativa: no que diz, o poeta põe-se em questão, expõe-se. A
poesia religiosa é profundamente ética porque está sujeita ao outro e ao
carácter de "responsividade", de interlocução, de qualquer palavra. A
grande poesia religiosa é interrogativa, e não apenas assertiva. Mais
evocativa do que afirmativa. Como uma prática iconoclasta da linguagem.
A poesia religiosa é de transporte, e de transporte colectivo, isto é,
metafórica. Por causa do seu referente último, o Rosto de Deus, que
provoca a ruína das figuras com que O dizemos.
13. Este é um encontro de legentes. Como Maria Gabriela llansol: “Desejo
encontrar alguém que me ame com bondade, e saiba ler: alguém que me
saiba ler”.
--- Alguém que queira ressuscitar para ti?
---Sim. Alguém que tenha para comigo essa memória” (O
Jogo da Liberdade da Alma, 2003: 80) |