1. Ler é deixar cair o olhar que se
inclina sobre a palavra até esta re-luzir. Ler é acender o texto e
deixar que o corpo seja afectado pelo que se lê. Ler é ressuscitar a
letra que dorme e fazê-la vibrar, acordá-la para o “mais-ver”, para a
“mais-paisagem. Ora, que mais luz hoje nestes textos? O mesmo de sempre:
a vida e a morte, a luta nunca inacabada entre a carne e o espírito, a
aventura do exílio e da promessa. A vida e a morte são incompatíveis,
como o são os desejos da carne e os desejos do espírito. Até ao fim,
nunca sabemos o que de facto se vai tecendo em nós e o que vamos sendo.
Puxados nos dois sentidos, somos a resultante de duas linhas, duas
forças e duas energias. Vivemos divididos entre a carne e o Espírito.
Entre o que trabalha em virtude do adquirido e o que trabalha para
aquilo que será, sobre o modo da promessa, do desejo, da herança e do
fim.
2. Aquilo a que a mística chama “carne” é
uma espécie de tecido entre as pulsões e a rede indecidível das ligações
humanas, ligações significantes que o suieito não controla.
Merleau-Ponty fala da “carne” como da carne da pessoa, carne do mundo. A
carne, pelo menos no quarto evangelho, e pelo facto de o Verbo se ter
feito carne, está em posição intermediária e provisória. Como se fosse o
lugar em que desaparece uma coisa e se anuncia uma outra coisa. O Verbo
que se fez carne vem carregado dessa função paradoxal de articulação
impossível entre aquilo que está diante dele e daquilo que deve vir
depois dele, em benefício da multidão. É nesse entre-dois que a lança do
centurião toca, abrindo ao discípulo a perspectiva do que vem.
3. Velhas pechas, más memórias: o corpo
foi muito tempo designado como “carne”: i.e. como sede de inumeráveis
fluxos pulsionais e de inesgotáveis fontes de prazer. A partir do século
XVI o interrogatório do confessor concentra-se sobre o corpo do
penitente: os seus gestos, os seus sentidos, pensamentos e desejos. Como
uma anatomia do prazer. O corpo com as suas diferentes sensações e
prazeres torna-se o código carnal. A confissão desenha uma espécie de
cartografia pecaminosa do corpo. A forma primeira do pecado contra a
carne é ter tido contacto consigo mesmo porque o pecado da carne habita
no interior do próprio corpo.
4. Há, na carta aos Romanos uma oposição
entre a carne a razão. Mas não podemos solidificar esta oposição. A
carne, na carta aos Gálatas, em vez de ser o “humano” em nós e a sua
face obscura, atesta a “humanidade” na sua irreversível desaparição. Não
há nada na carne que se confunda com o instinto nem com uma qualquer má
tendência Para Paulo a carne é o pedagogo, o guarda da filiação. É a
carne que tem de se haver com o espírito, como adversários e sócios. O
erro é opor radicalmente a carne e o espírito: é esquecer o versículo 16
do capítulo 5 que liga os dois movimentos. O que Paulo afirma é a
tendência que tem o primeiro a passar sem o segundo, a autonomizar-se. O
espírito não suprime a carne, estão em competição (v. 17) directa e
permanente. A entrada na vida sob a lei do Espírito muda tudo: o
Espírito converte a inércia que marca a lei, e a impotência da razão
para dobrar a carne à regra. Com vista à nossa justificação, Cristo
desactivou o pecado na carne da nossa carne, reduzindo-a ao nada (sem
condenar a carne!),
5. Para Jeremias, Isaías, Ezequiel o
exílio é coextensivo à própria condição do povo da Aliança. É mesmo o
resultado da sua ruína justificada. Este povo infiel será expulso da
terra e dispersado (Dt 28, 63-68). O cristianismo dolorista veio exaltar
a culpabilidade que ressoa no duo exílio/falta da ameaça profética. Mas
não há só desgraça na boca dos mensageiros de Javé. A esperança é a
outra face do exílio e a sua realidade é a escuta. O texto de Ezequiel
(37, 12-14) é um texto de consolação, não de aniquilação. Se a
ressurreição é algo que está continuamente a vir, as viagens da vida não
têm fim. Infeliz quem se fixa numa terra morta e impede o esforço
infinito para a viagem sempre recomeçada que Deus pede àqueles que o
escutam, para que as ossadas possam reviver. Infeliz é quem sucumbe aos
acenos de um nicho apaziguador. O regresso é uma promessa com a condição
que se leia no conjunto do trajecto da viagem: êxodo, exílio, regresso –
nunca um fim em si. O regresso é um segundo êxodo, prelúdio de um outro
exílio e outro regresso. O regresso é uma conversão, como épistrophê (um
regresso á origem) ou como métanoia – um renascimento graças a um
desapego do pecado e da idolatria operada pelo arrependimento.
6.Como pensar a relação entre a vida e a
morte e entre as acepções que Jo 11, 1-44 propõe, qual escolher para
acreditar na ressurreição? A ressurreição de Lázaro arrasta a condenação
de Jesus. Se Jesus continua a fazer sinais todos vão acreditar nele e os
Romanos vão destruir a cidade e a nação – assim pensa o Conselho e assim
pensa Caifás. A cura dum cego era pensável, a abertura dum túmulo não –
a separação entre os vivos e os mortos é absoluta.
7. Que é preciso pensar da vida e da
morte para crer na ressurreição? João não conta apenas a ressurreição
factual de Lázaro (de que não dá qualquer descrição): ele põe em questão
as categorias de vida e de morte. Como conceber a ressurreição para que
não apareça como a restauração da vida anterior nem escamoteamento da
morte, sem esquecer a eventualidade que Lázaro venha a morrer
ulteriormente após a sua ressurreição? A posição de Jesus diante da
morte não é de resignação nem revolta, mas afrontamento. São elas que
estorvam a sua ida ao espaço da morte: “Já cheira”. Marta crê na
ressurreição que para Maria é impossível e para os judeus é
inimaginável. Jesus rompe essa barreira que cela os mortos na sua morada
de pedra. Lázaro está morto e é um “morto” que sairá do túmulo – o que
contesta qualquer ideia de interpenetração da vida e da morte. Há uma
pedra que se fecha e se abre: a pedra aberta deixa livre a entrada da
palavra no interior do túmulo – o que permite redefinir o estatuto dos
mortos: um estado tal que a voz possa acordar-vos. Afinal Lázaro não
estava morto: ele ouviu a voz que o chamou de fora: “veni foras!” e saíu
do túmulo com as ligaduras em que o ataram.
8. Que inverte Jesus? O modelo binário da
vida e da morte. O estatuto do ressuscitado: literalmente entre a vida e
a morte. Sair da alternativa vida vs morte para a alternância do viver e
do morrer em função dum terceiro nível: o acordar, ter a capacidade de
ouvir a palavra. Assim se redefine a morte. Podemos viver fiados na
palavra e morrer. É possível morrer não morrendo para a eternidade: é a
palavra a crer que muda a necessidade da morte em “sono” e a
factitividade da vida em “acordar” que permite viver e morrer de outro
modo para a vida eterna. Questões não faltam: se Jesus amava Lázaro
porque não o impediu de morrer? Amor e vida, indiferença e morte fazem
um par. A sua amizade por Lázaro é compatível com a sua descida ao
túmulo – atestam-no a ausência provisória e as lágrimas.
9. Lázaro sai do túmulo de uma forma não representável: e nele as
marcas; sai mas como não entrou. A personagem preparada para assumir a
fé do discípulo é Marta, que não é o protótipo do crente mas da
tradição. Crer é um assentimento dado à promessa dita. Marta e Maria são
duas figuras inacabadas do crer. “Se estivesses lá, meu irmão não teria
morrido”, diz Marta. Marta anuncia a morte dum irmão, Maria a morte do
irmão. Marta verbaliza, Maria somatiza: cai aos pés de Jesus. É então
que Jesus estremece e chora. O comportamento de Jesus não se confunde
com nenhuma das duas irmãs. Para Maria a morte de Lázaro é um facto de
real. Mas Lázaro não foi devorado pela morte como pensa Maria: a vida
está escondida na promessa. É no lugar do corpo que a palavra deverá
suscitar o acreditar. Lázaro não foi prometido à imortalidade e nem o
será, ao contrário do que pensa Marta.
10. Quando Lázaro ressuscita, que diz Jesus? “Desatai-o e deixai-o ir.”
Basta que o homem seja desatado daquilo que o fecha em si mesmo para
viva de Deus. Lázaro conheceu a corrupção: um pecador. A salvação é o
perdão do vivo, a vida que volta a ser dada na carne que se corrompe e
que a perdeu. As ataduras que o envolvem são postas para conter e ligar
as carnes que se decompõem. Só aquele que é o caminho, a verdade e a
vida pode dar essa ordem: “Desatai-o e deixai-o ir”.” O que nos aproxima
do que Jesus diz à mulher adúltera: “via em paz e não voltes a pecar”!”
Quando Jesus ressuscitar os panos que servem para esconder a
decomposição da carne não terão servido de nada. Estão dobrados, ao
lado.
11. Lázaro somos nós, mortos-vivos que vivem nos seus sonhos de
criança-rei. Não estamos nós fechados num “túmulo”, numa “pedra” que
obstrui a saída, atados de pés e mãos? A palavra de Jesus separa em nós
o dia da noite (como o faz o Génese, com vista à criação). Nós
acreditamos na morte – esse é o nosso pecado. E não acreditamos na
“Vida”. A morte tem sobre nós um mau cheiro, um odor de cadáver. Para
Jesus qualquer morte é já pressentimento de vida. Antes de tomar a
palavra nomeia o Pai – é nele que se inscreve a lei da separação. A
questão que coloca o episódio da “reanimação” de Lázaro não é que tenha
ganho mais dez anos de vida ou tenha voltado do além, mas acreditar que
Jesus é capaz de dar vida aos mortos.
12. Este é um episódio que prefigura a Páscoa. Vivo é o que mexe, morto
o que se mobiliza. O movimento é a expressão da fé: viver é pôr-se em
movimento, acreditar. Se a fé implica o movimento, a vida inclui a
morte. “À fonte vou que vem da cruz/, vou lavar meus olhos/ de lá
caminha o meu Senhor/de lá vem a Páscoa”. É para lá que vamos. Que o
Espírito solte o nosso coração daquilo que nos impede de acreditar e de
ver e nos volta para Deus que está em nós. Que o Espírito faça essa
passagem da vida adquirida pela morte de Cristo; passagem do Amor de
Deus derramado nos nossos corações. Que a ressurreição da carne de
Cristo nos solte das ataduras e do lençol em que o nosso corpo
corrompido pelo pecado se esconde. Porque só a ressurreição diz bem alto
o perdão de Deus que se dá sem condição “à vida e à morte” como nós
dizíamos quando éramos crianças quando selávamos uma aliança com um
amigo. |