1. “Habitua-te a pensar que a morte, connosco, não tem
qualquer relação” (Epicuro, carta a Meneceia, 124). Este é o leitmotiv
da metafísica desde Platão a Hegel. Morrer, neste contexto, é exilar-se,
romper a ligação com os amigos, uma partida para uma outra morada, uma
outra economia (oikos, Fedon: 69c).
2. A vida e a morte, em sentido científico, são posições imaginárias.
Mas entre a vida e a morte está o corpo, o mortal, o vivo. A morte não é
a maturidade: não a podemos comparar a um fruto que amadurece e cai. Nem
com a chuva que parou. Quando morremos ainda não esgotamos todas as
possibilidades. O fim da morte não espera necessariamente o fim dos
anos. Heidegger propõe num curso de 1925 substituir o cogito sum de
Descartes por um sum moribundus, em que moribundus, “estou a morrer” é o
que dá sentido ao sum, ao “eu sou!”.
3. Ninguém experimenta a morte do outro: a morte torna-nos estranhos,
exteriores, espectadores impotentes diante daquilo que escapa a qualquer
espectáculo, porque “nada” aconteceu – e este nada é a morte – o
espectáculo dum cadáver humano que suscita por vezes a indecência duma
curiosidade, tanto maior quanto ela está subtraída a qualquer olhar. O
que se passa é nada, nada é menos espectacular que a morte e é por isso
quer nada aguça mais a indecência da curiosidade.
4. Um luto, uma doença não são acontecimentos se não acontecem
incomparavelmente a cada um e o tornam incomparável a qualquer outro.
Como pode a morte do outro afectar-me mais do que a minha? Quando
choramos os mortos é sempre sobre nós mesmos que choramos. O luto
perturba porque é a experiência absoluta da separação: o defunto é
aquele que literalmente “nos deixou”. O absoluto da separação é
temporal, não espacial: “está ali”. A sua desaparição arrasta consigo um
cataclismo que não é apenas a perda da pessoa amada, mas também a perda
de mim mesmo. É o pânico, o vazio total que ele deixa em nós. Não há
luto que não seja “luto amoroso” (“Amours défuntes”, dizia Baudelaire).
5. O luto é um problema de circulação e de trocas entre os vivos e os
mortos através das imagens em todas as suas formas (fantasmas, visões,
alucinações e lembranças). Os mortos podem dar a vida, isto é dar aquilo
que eles mais têm. Sem melancolia. A melancolia faz operar uma espécie
de lei de talião entre vivos e mortos. Os mortos fariam pagar aos vivos
o preço da sua desaparição, arrastando-os nas suas próprias trevas. Se
os mortos podem dar a vida é porque a imagem encontra esta economia do
excesso que faz dela uma potência viva e temível. Cabe aos mortos
dar-nos a vida para que lhes possamos sobreviver.
6. Não há conhecimento da morte. O conhecimento é poder sobre, é domínio
sobre. Conheceis a história de Frankenstein. Qual foi o pecado de Victor
Frankenstein? Não foi a hubris ou o ter ousado construir um vivo, mas o
ter abandonado a sua criatura depois de a ter construído. Deus não
abandonou a sua criação, enviou-nos a seu “Filho Amado”. Só a incarnação
do Verbo e a morte da pessoa divina, a sua morte real, permitem assumir
todas a morte dos homens. E porque a pessoa de Cristo contém as duas
naturezas, a humana e a divina, os homens podem esperar, se este Cristo
ressuscitou, viver a vida divina. O vivente que dá a vida morrendo é
mais forte do que a morte: é o homem ressuscitado.
7. A esperança sobrenatural incide sobre uma res – digamos, mal, uma
“realidade” – que ela não possui e que firmemente espera. A
originalidade da esperança sobrenatural é que ela sabe que não poder
atingir o que espera sem a ajuda de Deus. Diz-nos S. Tomás que através
dela atingimos “ad deum ipsum”, tocamos Deus, com o socorro do qual nos
apoiamos. A esperança encontra-se no nosso querer, em parte “irascível”,
o que explica o “violantes rapiunt” para o reino dos céus segundo o
Evangelho; a santa cólera dorme no desejo do homem, com o habitual
projecto de combater o mal.
8. Ninguém dirá que Job foi um optimista. Que género
de certeza se pode ter na situação de Job? Não admira que haja por vezes
uma expectativa certa do outro, ou uma certeza que parece visar apenas o
temporal – assim o “tu ne mourras pas”, a afirmação de alguma eternidade
no fundo do amor humano, de que fala Gabriel Marcel. Sem esperar não
encontraremos o inesperado, porque ele não é das coisas que se encontram
e não há caminho que leve a ele” (fr. 18 de Heraclito).
9. Que é o desejo? “Sinus cordis”, dirá Agostinho no 41 tratado sobre o
Evangelho de João, dobras do coração que temos de capacitar para captar
aquilo que nem o olho viu nem o ouvido ouviu: exactamente a contradição
heraclitiana da capacidade do impossível, mas na certeza que esta
contradição é o homem criado, desde que aprenda a “estender as dobras”
do seu coração. “Que toda a vossa tarefa seja o desejo. Toda a vida do
verdadeiro cristão é um santo desejo”.
10. Quem deseja a sanctitas? Que afecto é esse? Comentando Ex 34 (De
ovibus), Agostinho escreve: “Exterminarei as Bestas más da terra;
habitarão no deserto e em esperança. Que há no deserto? A solidão. E que
é a solidão senão a interioridade da consciência? É aí que é preciso
habitar em esperança, porque não ainda não estamos lá realmente (in re).
Lá está o deserto onde repousamos em esperança porque toda a nossa
tribulação passa; e o que era esperança será a coisa mesma e no repouso
toda nossa. Então tudo nos será manifesto; o pensamento não será mais
como a ovelha perdida, e a consciência não será mais um deserto: todos
serão conhecidos por si próprios quando o Senhor vier, que iluminará as
trevas secretas e manifestará os pensamentos do coração”. A esperança
firme não tira a boa fé e o reconhecimento da dimensão de obscuridade do
pensamento humano. A vida não é não morrer, mas viver com. E morrer em
verdade não é não sofrer, mas morrer por. O rosto do outro obriga-me a
acreditar na minha própria eternidade.
11. Onde situar a sedução do cristianismo? Na pessoa do Cristo
ressuscitado. Aquilo que Cristo promete não é a sobrevida sob forma de
um fragmento anónimo do cosmo impessoal e cego, mas garante-nos que,
pela fé, podemos reviver e reencontrar o rosto do amor, a voz e o
sorriso que amámos. É o schibboleth da doutrina cristã da salvação. A
limitação do desejo por Cristo que se diz o único verdadeiro pão, que dá
a única água viva não é a queda do homem na finitude desesperada, mas a
libertação do indefinido, destruição santa das “máquinas desejantes” da
servidão. Esta libertação só é possível através do sangue do cordeiro.
De todas as coisas terríveis, a mais terrível devia ser escolhida pelo
amor (Nicolau de Cusa). A mais terrível: assumir a morte e o pecado dos
homens, forçar as portas do inferno. |