JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, op
(UNL-DCC)
Este é o jardim que a ausência permite

1. Esta é uma história de começos: do dia, da semana, da luz, da vida. Ausente o jardineiro, resta o jardim que a ausência permite. Como se o corpo de Jesus apenas se mostrasse retirando-se de um real impossível de descrever sob a alternativa da presença e da ausência, do visível ou do invisível. Porém, é este retirar-se que desperta nos discípulos uma fé capaz de acreditar sem ver. Aquilo que se vê não é aquilo em que se acredita.

2. Há um modo de aparência de Jesus que vai desaparecer no túmulo. O corpo físico deixará de ser o lugar de reunião dos discípulos, o pastor deixará de reunir as suas ovelhas; ferido o pastor, as ovelhas serão dispersas. Como um perfume que se evapora, uma flor que murchou. Judas não entrega apenas um corpo a ser morto e enterrado como um cadáver. Dos Doze, há apenas traços: um que o traiu, e Pedro que segue de longe. Todos o abandonaram e fugiram. Resta um jovem que o seguiu, envolto apenas num lençol. Agarraram-no, mas ele, largando o lençol, fugiu nu.

3. De manhãzinha acorrem as mulheres ao túmulo. Que vêem? Um jovem “sentado à direita”, vestido com uma veste branca, nada normal no modo de vestir de um jovem. A Escritura não diz que é um anjo, nem o efeito que a visão provoca sobre as mulheres – o medo -  faz dele um anjo. Donde vem ele? Do Getsémani: vemo-lo a correr nu. “Procurais o Crucificado? Ressuscitou, não está aqui”. Não há no túmulo nada do que esperava encontrar. A morte não está no lugar onde a conhecemos e a vida não está onde supomos que ela esteja. “Eis porque não há mortos, só há incógnitas” (M.G. Llansol).

4. O Mestre deixou de estar lá para reunir os discípulos. Quem guardará a palavra? Tudo parece recomeçar com o jovem vestido de branco: se a sua palavra for lembrada e escutada, vai ser ela a reunir aqueles que na Galileia constituem o seu “corpo”: o corpo que saiu do túmulo é um corpo dito e acreditado sobre a palavra, como na última ceia do “mestre” com os “Doze”. A voz está indissoluvelmente ligada à mnémé, a memória absorvente. E quando memorizo assim a voz de outrem, quando a regenero em mim, estou perto de a rememorar – quase sem mim. A palavra continua à solta, como  no templo, à espera de uma nova escuta.

5. Não se veja neste jovem o Anjo da Melancolia, andrógino, imóvel, a olhar para trás: a lei, o deserto, a morte. Algo liga este jovem ao mundo da transfiguração. O passado tem clareiras por onde seguir, tem rios, mas só o presente salvo é lugar de navegação para o mar que a ressurreição abriu. A fala do jovem vestido de branco reorienta a procura das mulheres: elas procuram o crucificado. Ora, o seu corpo não está lá, precede-as na Galileia. Elas terão de dizer que ele está algures, precedendo-os, e que este novo modo de presença do “Crucificado” exige uma deslocação. Elas terão também de relembrar as palavras que ele deixou para deixar aberto nos discípulos um lugar para um lugar imprevisível. A figura do jovem representa o movimento que é a essência do sensível, e no mesmo lance a permanência e a transformação, a adaptação e a mobilidade. É como esse tronco que vemos em Is 6, sobre o qual se fará a regeneração. A permanência é o seguimento de Jesus, sem o que todos os demónios se disputam o desejo dos espectadores. O que é transformado é o modo deste seguimento ao longo da história, ilustrada por uma multidão de testemunhos
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6. Em vez de embalsamar um cadáver, as mulheres devem ir falar desta nova presença de Jesus que lhes escapa ainda. Vemo-las “traumatizadas e em “êxtase”. Tudo o que sabiam (elas e nós) da vida é ferido de incerteza e de interrogações. Que é então a vida se doravante aquele que estava crucificado e que está vivo se manifesta ao mundo? Era preciso passar por este êxtase que consiste em perder toda a forma de rentabilização da morte de Jesus (como a do perfume), para entrar no universo de sentido para qual nos convoca a palavra de Jesus e as citações da Escritura. Sobre o jardim que a ausência permite nasce um dia novo: o Cristo ressuscitado abriu uma brecha no mundo de todas as idades.

7. Todos aqueles para quem Jesus ressuscitou estão sujeitos à prova do reconhecimento porque doravante ele se assemelha ao pai, transfigurado pela Ressurreição. Para ver o Pai precisamos de novos olhos. O convite é para contar a desaparição do cadáver de Jesus, para testemunhar da presença do seu corpo na ceia da aliança que o perpetua. A vida corporal de Jesus perdeu-se como o perfume precioso, para que apareça um novo valor na relato a fazer. A morte de Jesus não pode ser reduzida à sua dimensão sacrificial, sobretudo se entendida como valor mercantil em troca pelo peso do pecado. A morte de Jesus tem de ser entendida como um sinal a interpretar e a memorizar. A dificuldade para compreender não é intelectual, é a expressão de uma resistência interior que não sabe ver a vida onde ela se manifesta.

8. O perfume derramado sobre a sua cabeça não é sacrificado para a sua sepultura; antes, em vez do perfume vem o relato, a palavra que o memoriza. Da mesma forma, o corpo entregue, abandonado, sepultado e perdido não é simplesmente sacrificado para pagar a nossa libertação, a sua perda abre um espaço novo para voltar a ouvir a palavra de Jesus. A ressurreição não vem neutralizar a morte de Jesus. Jesus não defendeu a vida que lhe foi tirada, como algo a recuperar mais tarde. Uma falha instauradora marcará para sempre o “corpo” dos crentes. Há um corpo a abandonar de que os soldados se apropriam, um corpo embalsamado que as mulheres não reencontram: há o relato de um “outro” Jesus a tornar presente numa ceia ritual, um “corpo” capaz de atravessar a morte, como a figura do “jovem”.

9. Nós somos espectadores do mundo e produtores das aparições deste mundo e de todo um outro mundo. A condição do espectador é a de um sujeito que está continuamente a mudar de lugar. O olhar do espectador (e do crente) é movimento se ele quer escapar à paralisia da morte. Assim o diz a experiência das mulheres naquela manhã, assim o diz a nossa experiência de crentes, obrigados que estamos a uma verdadeira hermenêutica da reminescência que só post factum Resurrectionis se cumpre, obrigados que estamos ao testemunho: afinal, os únicos testemunhos de Deus somos nós. Nós somos os iniciados duma passagem com um fim à vista. Aquilo que codifica a base da compreensão não é a percepção pelos sentidos, mas os afectos. O Espírito que Jesus promete aos discípulos tem por missão “ensinar-lhes tudo” e “relembrar-lhes tudo” o que ele lhes disse (Jo 14,26). Que o Espírito nos dê a mão para atravessar o cabo da ressuscitação, sem êxtases inúteis, nem terrores. O luto para quem acredita é azul, não é preto. A ressurreição é o triunfo profano do pensamento dos mortais sobre qualquer ficção imortalizante ou imortalizada (M. J. Mondzain). Toquem os sinos que acordem o mundo da melancolia que é a tentação do deserto, e que o perfume do alecrim invada este lugar onde se celebra a Páscoa!

José Augusto Mourão, dominicano, escritor, é professor na Universidade Nova de Lisboa, co-director do CICTSUL - Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa, presidente do ISTA - Instituto S. Tomás de Aquino, e coordenador do TriploV.