JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, op
(UNL-DCC)
SABORES E SABERES
Sabores Judaicos
Trás-os-montes (Graça Sá-Fernandes e Naomi Calvão)

“Só em comunidade se faz jus à comida; ela deve ser partida e repartida para fazer efeito. Sem olhar a quem: antigamente um mendigo à mesa enriquecia qualquer refeição. Tudo depende da repartição e doação, não da conversação social em volta. Por outro lado, é espantoso que a convivência se torna crítica
sem refeição. A hospitalidade nivela e une.”
(W. Benjamin, “Augias” restaurante automático”)


Podemos falar da sociedade como texto, segundo a etimologia: tecer, trancar, entrelaçar, mas também compor, construir e em sentido figurado contar. É através da tecedura de discursos entrelaçados que uma sociedade existe, que se constrói enquanto entidade distinta dos indivíduos. Lê-se no capítulo 13 do livro do Êxodo: “Conservareis a memória deste dia, em que saístes do Egipto, da casa da servidão, porque foi pelo poder de sua mão que o Senhor vos fez sair desse lugar; não comereis pão fermentado…Durante sete dias comerás pães sem fermento, e no sétimo dia haverá uma festa em honra do Senhor. Explicarás então a teu filho: isto é em memória do que o Senhor mim.”(v. 3.6..8).

A cultura judaica é uma cultura textual. “Certas culturas consideram-se a si próprias como uma determinada soma de precedentes, de modos de uso, de textos; outras como um conjunto de normas e regras. No primeiro caso é correcto aquilo que existe; no segundo, existe aquilo que é correcto (…) os primeiros fundam a cultura como soma de textos; os segundos proporcionam metatextos (…) Chamaremos cultura textualizada a primeira cultura e cultura gramaticalizada a segunda.” (Lotman, 1975: 70).

Não há sociedade ou instituição que não se ponha a questão do “porquê isto?”, cada vez que os convivas se sentam em volta de uma mesa engalanada e cheia de pratos menos habituais. A narrativa alimenta os rituais de contacto que são as celebrações e as festas colectivas através da mesa e das maneiras da mesa, segundo uma ciclicidade temporal com vista a fortalecer as relações de parentesco, de pertença ou de grupo. Lembrem-se as reflexões de Lévi-Strauss sobre a dimensão estrutural e significante da alimentação:

“Creio que tal como a língua, a cozinha de uma sociedade é analisável em elementos constitutivos que poderiam chamar-se gustemas e que estão organizados de acordo com determinadas estruturas de oposição e de correlação. Poderíamos distinguir a cozinha inglesa da francesa mediante três oposições: endógeno/exógeno (matérias nacionais ou exótico); central/periférico (base da comida e contexto); marcado/não marcado (quer dizer, saboroso ou insípido) (…) E se observamos que a cozinha francesa é diacrónica (em distintos momentos da comida estão em jogo diversas oposições) enquanto que a comida chinesa está concebida sincronicamente, quer dizer que as mesmas oposições podem servir para construir todas as partes da comida, a qual por esta razão pode ser servida ao mesmo tempo…” (1968:79).

Nesta lógica, a prática culinária judaica ( de Trás-os-Montes) seria colocada no espaço semântico da exocozinha, mas de facto trata-se de um estado intermédio sendo um alimento que integra sopas quentes deve vincular-se à ordem do +intimo, ao familiar e ao endocêntrico. Ao mesmo tempo, pelas componentes que a acompanham, pelos seus usos sociosemióticos vincula-se à ordem exocêntrica.

Afinal, que de mais sedutor ao paladar que um chá das festas onde as mais altas memórias e desejos se misturam? Que ponche mais saboroso para anteceder ou seguir uma boa ceia? Quem nos servirá estas iguarias? As mulheres, evidentemente. São elas as melhores guardiãs das tradições e aquelas que melhor conhecem as mais profundas (e baixas) inclinações dos humanos (dos homens, em particular). Que, no comer, não conta apenas a satisfação (de uma necessidade elementar) mas o prazer de comer. Mesmo “mortos de fome”, o que mais se procura numa mesa é uma sensação gustativa eufórica. O animal abocanha tudo, o animal que fala (e que somos nós) distingue, saboreia, comenta, degusta. Donde os códigos gustativos culturais de que dispõe cada cultura.

As iguarias servem-se, as receitas actualizam-se com finesse e subtilidade – sem esta arte nenhuma comida é aprazível à vista e muito menos ao paladar. O que é mais constante ao gosto é o ele ser aspectual. Mesmo aparecendo mais como proposições de contrato do tipo: “se fizer assim…então”,  o que  o destinador de uma receita visa é fundamentalmente um /saber-fazer/ da parte do destinatário. A receita dos bombons de chocolate, v.g. , dispõe-se como uma amostra, como exemplo de tácticas e modos de fazer mais do que um texto autodescritivo. Haverá sempre a receita canónica e as suas variantes. E é, em geral, nas variantes que o “génio” particular de cada cozinheiro(a) mais de afina.

A sequência canónica ou type gastronómico de uma cultura gramaticalizada é de ordem teleonómico e sequencial. Pressupõe um percurso cuja dimensão sintagmática está previamente regida por uma prato ou alimento inicial e um elemento final de ordem conclusivo. Rocco Mangieri nota que “tal como uma boa parte da música etiquetada como culta, uma narração culinária gramaticalizada supõe momentos de ascensão/descida, de clímax ou pontos máximos de ordem dramático acompanhados ritmicamente pelo sabor e a cor dos alimentos secundários” (Mangieri, 2006: 27). Há, de facto, alguma analogia entre uma receita de cozinha e uma partitura musical ou um plano de arquitecto: como são manifestações de competência que se actualiza, antes de se ver o que daí resulta. Haverá algo de mais ordenado, elaborado do que uma receita de cozinha?

Uma refeição fora de um contexto convivial é triste. O espaço, a disposição da mesa e a comunicação são a forma englobante de uma refeição. O provar a comida é ao mesmo tempo um exercício sensorial e uma forma particular de ekphrasis de :”descrição” dos vários compósitos que fazem um prato: observa-se, escuta-se por vezes, sente-se, respira-se, comenta-se. O gosto e o cheiro não se dissociam: emanam, difundem-se, penetram. Cada vez que um prato nos surpreende, é inevitável a pergunta. “que é isto?” O sabor apresenta-se como um modo de contacto, uma sensação táctil: choque, sensação fluida ou tenra. Eis um conjunto de sabores recolhidos por ouvidos e mãos de fada, resgatados de tempos imemoriais, que correspondem às diversas festas que os judeus entre nós celebravam.

Antecede cada uma das receitas apresentadas uma contextualização de cada prato, de acordo com o “espírito” que cada festa evoca. Mesmo se não se veja que ligação mantém cada festa com os pratos correspondentes. A matéria dos pratos corresponde bem aos legumes que em Trás-os-Montes mais abundam: a abóbora, a urtiga (!), o feijão branco ou encarnado, os grêlos. Aqui se misturam o doce e o amargo, o local e o exótico. E não faltam as alheiras e os mais esquisitos pratos: sopa de colorau, pasta de frango e noz, peixe assado com molho de mel e hortelã, e os doces: de marroqueiros a orelhas de burro!

Benditas as mãos que preparam os alimentos. Benditos os rituais da ceia. Bendito o gesto que não esquece o pão que a muitos falta. O Judeu inscreve naquilo que come a sua história, as suas alegrias e penas. Na tradição judaica,  a alimentação é um reflexo da concepção do vivo como a Bíblia o define, em particular no Levítico. Pela mesma mesa em que se serve a cozinha, passa o alimento que sacia e a memória que faz um povo. Deus dá os animais como alimento aos seres humanos, com uma restrição: abster-se de sangue. Os tabus alimentares - a proibição de comida que levede, o derramamento de sangue: “Não comereis a carne com a sua alma, isto é, o sangue” (Gn 9,2-4) – protegem da desordem que o caos introduziu na criação. A restauração da perfeição original falhou. A violência faz parte do mundo. Entretanto, é preciso comer. Coma-se na alegria, breve que seja: é aí que o de mais comum nos é dado partilhar: a palavra.

José augusto mourão, op