Semana Santa da coligação assassina?

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


  1. Com o Domingos de Ramos começa a Semana Santa e é proclamada a Paixão de Cristo, segundo S. Lucas[1]; na Quinta-feira, a leitura da última Ceia é de S. João[2]; é do mesmo evangelista a leitura da Paixão na Sexta-Feira[3]. Esta é uma selecção. De facto, existem quatro narrativas, tantas como os Evangelhos. São textos essenciais porque é em torno das razões da condenação de Jesus à morte, da teimosia experiencial em dizer que Ele ressuscitou, que pelo seu Espírito reúne e anima todos os que acolhem o seu projecto de abertura universal, que se afirmaram os movimentos cristãos.

Importa ter presente que a escrita dos textos do Novo Testamento recolhe várias tradições orais. É feita bastante depois dos acontecimentos. Não são escritos de reportagem. São interpretações de comunidades que viviam e celebravam a certeza de que, com Jesus, participavam no advento de um céu novo e uma nova terra[4]. Celebravam, faziam memória e viviam, no seu presente, o que depois foi passado a texto. Os exegetas, de várias gerações e com problemáticas diferentes, têm trabalhado para encontrar os traços do Jesus histórico e o Cristo da fé.

As narrativas da Paixão precisam de mostrar o falso processo jurídico e religioso que O condenou. É por isso que, ao apresentarem os anúncios da Paixão, têm de jogar com a crueldade do processo e, ao mesmo tempo, dar a ideia que Deus nunca abandonou o seu Filho. Precisam da ficção do tudo previsto, para deixar bem a divindade e, em simultâneo, a surpresa ambígua que atingiu a humanidade de Jesus: vai sofrer, mas ao terceiro dia tudo acaba ou recomeça na alegria da vitória.

Na oração Eucarística II, rezamos: «Na hora em que ele se entregava, para voluntariamente sofrer a morte…». Precisamos de ter cuidado, porque podemos dar a ideia, não da tragédia que O atingiu, mas de um suicídio assistido. Significa, apenas, que Jesus não abandonou o seu testemunho, mesmo sob a ameaça da morte.

Os Actos dos Apóstolos parecem mais realistas acerca do processo que condenou Jesus à crucifixão[5]: «Sim, verdadeiramente coligaram-se, nesta cidade contra o Teu santo servo Jesus que ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos com as nações pagãs e os povos de Israel, para executarem tudo o que, em Teu poder e na Tua sabedoria, havias predeterminado». Também aqui, os textos precisam de mostrar que Deus não foi surpreendido, mas também que não foi Ele o responsável pela morte de Jesus. Deus não é assassino.

Jesus, na sua actuação, nos seus gestos e palavras, pôs em causa a versão do judaísmo que encontrou e na qual foi educado. Era uma religião da exclusão dos pobres, dos doentes, das mulheres e dos publicanos: todos os que cabiam na classificação de pecadores, por uma razão ou outra. Se a vida lhes corria mal é porque não estavam de bem com o Deus da Lei. Era a todos esses que Jesus trazia uma esperança. Não estavam condenados, cabiam no Reino de Deus que anunciava. Não contente com isso, aproveitava um pilar semanal da religião – o Sábado – para fazer o que estava proibido, sobretudo curas. Declarava que, naquela religião, os animais tinham mais sorte do que os doentes. Dos animais podiam cuidar, dos humanos doentes era proibido. Por fim, pôs em causa o próprio Templo, em torno do qual girava, não só a vida religiosa, mas também, e sobretudo, a vida económica e social. Isto era o mais grave para todas as tendências do judaísmo, do país e da grande diáspora que o frequentavam nas grandes festas e eram uma grande fonte de receitas.

O que era importante mostrar é que o zelo de Jesus, para fazer do Templo uma casa de oração e não de negócios fraudulentos, não é obra de um profeta verdadeiro, mas de um falso profeta que deviam denunciar e julgar. Era preciso, no entanto, envolver o poder romano, o poder do Império, na morte de Jesus. A forma mais directa era a de mostrar que Jesus se movimentava para chefiar uma insurreição contra Roma.

  1. Na Paixão, segundo S. João, Pedro nega três vezes a sua pertença ao grupo dos discípulos. Jesus, pelo contrário, enfrenta o tribunal em todos os momentos, diante de Anás, Caifás e Pilatos. A coligação de interesses, de que falavam os Actos dos Apóstolos, torna-se dramática. Pilatos não vê razões para condenar Jesus, mas também não quer problemas, nem com Judeus nem com Roma, porque ele tem de mandar fazer uma acta acerca da condenação à morte por crucifixão.

O texto mostra que o projecto de Jesus não se situava nem ao nível dos poderes do Império Romano nem dos poderes do judaísmo. Essas eram as tentações do começo da sua intervenção pública, eram tentações de um messianismo diabólico. O domínio económico, político e religioso não entrava no seu projecto. Era outra coisa, queria um mundo outro.

Ao forjarem a acusação de que Ele queria ser uma alternativa política – o rei dos judeus –, Pilatos mostra que não acredita em nada disso, mas a acusação é feroz: se O soltas, não és amigo de César! Condenado à crucifixão, Pilatos redigiu num letreiro, em hebraico, latim e grego, as razões da condenação: Jesus Nazareno rei dos judeus. Apesar dos protestos contra este letreiro terrível, não foi alterado. Os poderes judaicos procuraram encostar Pilatos à parede. Agora, é Pilatos que os responsabiliza por tudo o que aconteceu.

  1. Dir-se-á que essa é uma história antiga. Não tem nada a ver com o que estamos a viver hoje, não só na Europa, mas no mundo: uma guerra mundial aos bocados, como via e previa o Papa Francisco. Agora, temos, de facto, na própria Europa, novas narrativas de destruições e massacres incríveis, mais precisamente na Ucrânia.

Quando os discípulos de Jesus lutavam pelo poder, no interior do grupo, o Mestre observa-lhes: os reis das nações exercem domínio sobre elas e os que as tiranizam são chamados benfeitores. Quanto a vós, não deverá ser assim. Pelo contrário, aquele que governa seja o servo de todos. O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida por todos[6].

É muito triste que algumas formas de cristianismo e suas lideranças legitimem essa violência e destruição, perdendo a memória do Crucificado. É Ele que, ao ser morto, matou o espírito de vingança: Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem[7]. Não era a morte que dominava o seu coração e, por isso, os seus discípulos devem trabalhar, com todos os movimentos que dão a sua vida para destruir a guerra e as suas loucuras e instaurar a paz.

Os discípulos de Jesus têm de voltar a meditar a Carta aos Efésios que não pode ser mais clara: Cristo é a nossa paz. Na sua carne, anulou a lei, que contém os mandamentos em forma de prescrições, para, a partir do judeu e do pagão, criar em si próprio um só homem novo, fazendo a paz, e para os reconciliar com Deus, num só Corpo, por meio da cruz, matando assim a inimizade. E, na sua vinda, anunciou a paz a vós que estáveis longe e paz àqueles que estavam perto. Porque, é por Ele que uns e outros, num só Espírito, temos acesso ao Pai[8].

Que fazer para tornar Santa esta semana assassina?


[1] Lc 22,14 – 23,56

[2] Jo 13, 1-15

[3] Jo 18,1 – 19,42

[4] Ap 21

[5] Act 4, 27-28

[6] Cf. Mc 10, 35-45; Lc 22, 24-27

[7] Lc 23, 34

[8] Ef 2, 14-18


Público, 10 Abril 2022