RUI MENDES
(Portugal, Coimbra). Poeta e ativista cultural
Podes entrar, mas não feches a luz, nem as portadas das janelas.
Se o fizesses, eu morreria por aqui, debaixo do abismo desta noite contínua, onde possuo o esquecimento dos meus dias num livro fechado, como o limbo de uma bela adormecida.
Ouve: só tenho esta luz por companhia, só esta luz na sua centrífuga piedade é quem guarda o ermo dos meus soturnos pensamentos.
Senta-te aí, mas de forma que te não veja!
Sim, também é o desejo de não ter sede de nada, ou de ninguém, dentro de mim, que faz com que eu chegue a pontos, por vezes, de não conseguir fechar os olhos, ou abrir os dedos das mãos, com receio que a luz de mim se arrependa, e parta para outro lugar, sempiterno, e me venha a deixar órfã de si, flagelada.
Sim, eu sei em que estás a pensar.
É verdade, sustento-me das imagens fugazes, despojos de anjos e demónios, que se me plasmam fixamente nos olhos, lívidos assombros girando velozmente na retina, e isso deixa-me prostrada, envenena-me, até ao árctico fogo das lágrimas.
E é por isso, é bem por isso, que os meus olhos, estás a ouvir-me, estão cheios de sombras, pesados das sombras que atravessam o infinito da clausura dos espelhos que, por todo o lado, vagueiam por esta casa minguante, despojada, sem purpurinas nem grinaldas, pelas escadas e pelos corredores.
Pelas minhas escadas e corredores, quando a febre do cansaço se apodera do labirinto do meu corpo, e começa a cortar-me o sangue nas veias, e eu procuro arrastar-me pelo chão para, respirando melhor, me afastar da minha morte.
É assim. Vou guardando, no regaço da alma, estas paredes massacradas pela viuvez dos retratos, desde a infância dos meus sentidos, sempre a idear que ainda deve ser possível haver jardins frondosos, plantados no alto mar, e crianças lá dentro, brincando, na insónia vibrante dos ventos e das marés.
Custa a acreditar, mas é bem verdade: tens razão – alimento-me das mortificadas trevas do sonho!
Escusas de me olhar de maneira tão assassina, eu sei que estou nua.
Estou nua como uma pedra ou uma árvore peregrina, porque sinto, tumultuosa, a dor que regressa à solidão.
Ouço em ti, uma insondável e saudosa canção de embalar!
Rui Mendes Janeiro de 2005