Sem cabimento

 

 

 

 

 

 

JOSÉ RIBEIRO MARTO


Eu ia a passar sem qualquer pensamento sobre o que quer que fosse. Vinha do meu passeio de fim de tarde, que nunca tem destino muito certo.

Na Almirante Barroso, já quase sem trânsito e gente às oito horas da noite, vejo uma mulher alta, cabelo cor de cobre, curto, calças de ganga, blusa preta com círculos amarelos. A mulher estava a empurrar um tubo branco pela janela do banco traseiro de um carro mal-estacionado, quase a meio da rua, com o pisca-pisca ligado. Primeiro empurrava devagar, num vai – agora -, agora- agora -agora, agora- é- que -é, metade do tubo ficava de fora, não se acomodava. A mulher procedia com cuidado, mas até certo ponto, depois parava. Voltava a puxar o tubo para fora e reiniciava cautelosamente a operação do zuca-zuca. Falava qualquer coisa, parava novamente. O meu primeiro impulso foi dizer: “não faça isso” e ainda não tinha visto nem ouvido a mulher idosa no banco do co- piloto: “não posso estar sempre a abaixar a cabeça”. Pus-me a mudar coisas de uma algibeira para outra, não queria ser visto pela mulher que continuava a sua operação de encaixe. Ninguém gosta de se ver observado, quando realiza tarefa impossível, foi o que pensei, por isso disfarcei o mais que pude. Estas situações são sempre delicadas, uma proposta de ajuda não é habitualmente bem recebida. Não sei se ouviria: Quer ajudar o quê? Ou: ajuda pra quê? Tem livro de instruções? Seriam perguntas legítimas, até porque eu não saberia enfiar o tubo pela janela do carro e muito menos pedir à idosa que baixasse a cabeça.  Ninguém gosta de ser ajudado quando está a realizar coisas aparentemente simples, ou tidas como tal, ou até impossíveis. Habitualmente, as pessoas ficam zangadas, desnorteadas, melindradas até, algumas agradecem com maus modos, acham que uma pequeníssima interferência as desconcentra dos seus empreendimentos. Exclamei baixinho: Que diabo, a mulher comprou o tubo e não percebe que o carro tem duas portas, que existe uma co-piloto. Comprou e o assunto ficou arrumado.

Ainda fiquei a olhar uns instantes para ver como a mulher resolveria o irresolúvel, desandei a pensar que, por momentos, a idosa saísse do carro e se pusesse a dizer: – eu já te tinha dito para não trazeres o tubo, mas tu és teimosa! Ou: – o raio que te parta a ti e mais o tubo, ou:ainda estou tonta de tanto abaixar a cabeça.

Não sei o que entretanto se passou entre a mulher, o tubo e a copiloto. Sei apenas que antes de olhar para trás , quase a vencer a esquina da rua, havia uma pequena fila de carros. O primeiro condutor parecia compreensivo, esperava, mas os outros apitavam, não tinham tempo para as  provas experimentais da mulher.  Um pouco depois, já a atravessar a passadeira, vi o carro da mulher a passar com tubo um pouco fora da janela e uns quantos carros a segui-la, como quem segue um cortejo.


José Ribeiro Marto