LUÍS COELHO
Luís Coelho (Portugal) . Fisioterapeuta e escritor
Adensa-se a contenda existente entre a ciência médica/clínica “stricto sensu” e as terapêuticas não convencionais, reflectindo esta uma luta bem mais profunda, de paradigmas, que, a despeito ou por respeito do visado equilíbrio, pretendo sintetizar.
A bem ver, trata-se de um “equilíbrio” que oscila e contrapõe, mormente, a “indústria” dos estudos empíricos e as terapias de cunho mais abstracto, baseadas em filosofias mais ou menos “espirituais”, o que, de algum modo, é confrontar o que se fundeia na observação “controlada” e o que parte de um “ideal” historicista.
Este “ideal” tem recebido, ultimamente, um novo afluxo “energético”, um renovado impulso “kármico”, por parte de uma moda “pós-moderna” que reencarna a Espiritualidade e a atiça contra a desumanidade de uma ciência excessivamente “realista”. Já se previa este ressurgimento do “ideal”, e até os terapeutas convencionais o vinham praticando, se bem que mascarado pelos atributos da psicologia moderna. Mas o que, agora, é visado como “emoção” já foi encarado enquanto “espírito” num sentido bem mais pleno e mítico, com todo o aspeito de um dogma para a modernidade.
O que o “ideal” tem a oferecer ao mundo moderno não é pouco e revê-se no cuidado pela “individualidade”, pelo “ser” enquanto fenómeno irrepetível. Mas este “ser” não inclui somente o “paciente”, mas também o terapeuta como construtor “ideal”, assaz racional, do “outro”, o que potencia inúmeras possibilidades decisoras e salvíficas, aparentemente irredutíveis aos elementos, a números. Esta “ciência”, no sentido platónico, convida, infelizmente, a muitos excessos fabulísticos, à ficção, a qual, poderá, não obstante, ajudar de um modo essencialmente placebetário.
O surgimento do método científico, a negação do mito, enquanto reduto do “intuitivo”, do observacional emotivo, atendeu justamente ao lado mais fantasioso dessa ciência “holística”, oferecendo o mecanismo empírico, da observação sistemática, como instrumento de decalcamento de uma realidade encarada na sua “objectividade”. O lado menos benemérito desta “ciência” está, exactamente, na redução, bem como na “grupalização”. Os estudos de carácter estatístico, tão incrivelmente louvados por inúmeros clínicos, constituem o aspecto mais negativo da moderna ciência. Porque as “médias” são insensíveis ao que é “individual”, e porque o isolamento de variáveis apaga o efeito do “todo”, mais notório precisamente no que é do “indivíduo”. A ciência estatístico-probabilística transforma o “ser” num “sujeito”, abstraindo-o do seu corpo, do sentimento.
Ademais, só quem nunca esteve envolvido na realização e publicação de estudos é que crê na sua infalibilidade. A fraude não é a excepção, mas sim a regra. As limitações estatísticas, os sortilégios de publicação, a manipulação de resultados, tudo isto está, curiosamente, também bastante dependente de factores que ultrapassam a esfera puramente objectiva. Uma espécie de “placebo” subsiste na investigação, é o “efeito Édipo”, segundo Popper, o efeito Pigmaleão. De resto, estas e outras questões de ordem “epistemológica” não costumam ser o forte dos cientistas e dos clínicos…
O que não implica que estes estudos percam globalmente a sua importância. Mas, falando de ciência, é preferível confiar no seu núcleo duro, legalista, o que vai sempre ajudar a entender se existe, no relativo às terapêuticas, certa verosimilhança. É aqui que elas podem ser perspectivadas como “falsificáveis” (Popper). Esta é a medida de um rigor que pode e deve “limitar” as desmesuras da “ciência” holística. Não se trata, portanto, de eliminar o foco “emocional”, totalizador, personalístico, trata-se, sim, de o contender com o poder da observação, crítica, “material”, necessariamente “comum”. Já o “ideal” tratará de lembrar à ciência o seu aspecto “subjectivo”, as limitações que o sentimento estende à razão.
Assim, bem vemos que os dois termos são necessários à equação “terapêutica”. Mas, como é característico no “humano”, é comum haver uma escolha que radicaliza um deles face ao outro. E, assim, para os “analíticos”, nada é verdade se não vier no Pubmed, o resto é tresloucura. E para os “ideais” tudo é fraude e conspiração. Para aqueles, a medicina tem de funcionar independentemente do “clínico”, para estes, tudo se resume à “relação”. O que, de mais a mais, faz com que aqueles sejam toscos na relação com o irrepetível e estes (se) seduzam com a sua “arte” levada ao extremo do “relativismo”. Ora, tanto o cientificismo quanto o holisticismo acabam por revelar as suas crenças, um dogmatismo que pode chegar a prejudicar todo o processo.
Dogmatismo unidireccional que, abundando nas discussões teóricas, na prática, está ausente do labor terapêutico. Não usa o médico o placebo, não tem este de ser “casuístico” na relação com o paciente, não parte ele, bastas vezes, de Sistemas ou modelos cerzidos pelo conservadorismo metodológico? Não é a terapia convencional identicamente estabelecida no princípio totalizador, em que os métodos se fundem para formar uma coisa maior do que a “soma das partes”? Por outro lado, não pode o “não convencional” fazer uso de raciocínios clínicos baseados em modelos empíricos, não poderá este restringir a sua actuação aos aspectos mais fisicalistas? Afinal de contas, também os terapeutas não convencionais possuem os seus estudos, igualmente no Pubmed, também eles partem de bases físicas e biológicas, e da observação como método promotor do modelo.
A respeito das bases biológicas, não está, com obviedade, colocada de lado a possibilidade de reinterpretação científica de algumas terapêuticas. Por exemplo, a acupunctura poderia ser compreendida em termos do sistema nervoso. E a osteopatia possui muito em comum com a Fisioterapia, bastando-se grandemente com processos mecânicos. Talvez estas e a Fitoterapia, bem como a Naturopatia, possam, assim, reclamar uma respeitabilidade superior à homeopatia, e sobretudo a coisas como Reiki ou Xamanismo.
Mas a dualidade que tenho vindo a defender num tom quase caricatural possui um vértice compreensivo fundamental. A incomensurabilidade de paradigmas basta-se com os territórios intrínsecos: frequentemente o espiritualista diz que o fundamento dos seus métodos é incognoscível e “qualitativo”, não podendo ser reduzido pelo instrumento materialista. Mesmo quando não existe grande plausibilidade biológica, o “espiritualista” pode sempre argumentar que a sua “arte” está em outro nível de (in)compreensão. E que o que a ciência hoje não prova pode ser provado amanhã.
Há, tal-qualmente, factores socio-económicos a ter em atenção. Sabemos, como tal, que o Sistema é mais compatível com a “grupalização” do que com um mecanismo que implique tempo e atenção. O que convoca e, simultaneamente, adverte uma potencial mudança. Obviamente toda a mudança periga a estabilidade, e não é possível saber até que ponto a “holisticização” não iria fundamentar a histeria, a conversão, de um processo corpo-mente até agora contido de alguma maneira.
Mas essa é uma discussão que acalenta um certo paternalismo “proteccionista”, e que, bem vendo, perde o seu fundamento aquando da proposta de “liberalização” do processo. Quiçá pudéssemos lançar o equilíbrio premente às urtigas de objectização do resultado. Com placebo ou sem ele, com ciência ou sem ela.