Saudades do Império

 

 

 

 

 

 

LUIS DOLHNIKOFF


Em 1975, com a queda de Saigon para os comunistas do Vietnã do Norte, tão apoiado pela URSS e pela China quanto o Sul pelos EUA (a Guerra do Vietnã não foi uma guerra da América), os “progressistas” do mundo “decretaram”, pela enésima vez, o fim do “império americano”. Não o foi (como não o fora antes, quando da conquista de Havana por Fidel Castro em 1959), porque o “império” continuaria firme e forte, entre outras coisas vencendo a Guerra Fria (portanto, a Segunda Guerra Mundial definitivamente) em 1989, ao levar a URSS ao colapso e inaugurar o pós-Guerra Fria, em que os EUA seriam a única superpotência.

O pós-Guerra Fria e a hegemonia unipolar americana durariam apenas uma década, soterrados sob os escombros do World Trade Center em 11 de setembro de 2001. Mas isso tampouco foi o fim do “império americano”. Porque o que não existe não tem começo nem fim.

A China não é um país, no sentido de um Estado-nação, em que, resumidamente, um Estado, conjunto de instituições governamentais, governa uma nação. A China não é um país porque sempre foi um império, que governa diretamente mais de uma nação. Um império de fato, apesar de pouco visível aos olhos ocidentais por ignorância, propaganda chinesa e por ser um império contíguo (além de contínuo), à diferença, por exemplo, do Império Britânico, marítimo e intercontinental. A etnia han (vulgo “chineses”), cuja língua é o mandarim e cuja capital é Beijing, tem uma população de 1,2 bilhão em um total de 1,4 bilhão de chineses. Duzentos milhões de chineses não são han. Duzentos milhões de chineses são súditos do estado han, a China. Um estado imperial. Um império de fato. O fato menos disputável da histórica condição imperial da China é sua ocupação colonial do Tibete em 1957, transformando-o em província. Os tibetanos não são han, os tibetanos nãos são chineses e o ex Tibete é hoje uma província da China. Do Império Chinês, que é, de fato, como reza a tradição, milenar.

Os EUA jamais foram um império porque o conceito de império se baseia na imposição direta de um governo externo a uma região, um país. Como a China no Tibete – e no Xinjiang. Como a Inglaterra na Índia até 1948. Como o Império Romano em toda a bacia do Mediterrâneo. Os EUA ocuparam o Japão em 1945 e lá se mantiveram até 1952, saindo então voluntariamente. O mesmo na Alemanha Ocidental (à diferença do Império Soviético, que governaria a Alemanha Oriental por um sistema de satrapia comunista até sua extinção em 1990). Nunca houve um império americano, mas sim, desde 1945, a hegemonia geopolítica, econômica e cultural dos EUA, compartilhada e disputada com o Império Soviético até 1989. Império não é hegemonia, mas governo direto. Hegemonia não é império, mas poder e influência na ausência de um estado imperial.

Em suma, os antiamericanistas sempre estiveram errados ao decretar e redecretar o fim do Império Americano, por dois bons motivos: porque nunca houve tal império e porque a hegemonia americana jamais findou. Até agora.

O mundo pós americano, ou seja, pós hegemonia americana, afinal começou. E não será bonito.

Impérios não são todos iguais. Ao contrário. São todos diferentes. O Império Romano era diferente do de Alexandre em todos os aspectos: geográficos, culturais, linguísticos, políticos, econômicos, administrativos. Assim também os impérios mongol, britânico e otomano. Sequer os fascismos (os verdadeiros, não os “fascismos facebook”) são iguais. O nazismo pode ser sintetizado como um fascismo racializado, em que o antissemitismo era central, e o fascismo italiano, como um nazismo não racializado. Há fascismos piores e menos piores. Mussolini não construiu Auschwitze. Há impérios priores e menos piores. O Império Otomano, comparado ao contemporâneo Império Britânico, era mais brutal. Para citar apenas um exemplo, sua guarda imperial, os janízaros, na verdade a elite e o centro do exército imperial otomano, era formada por meninos cristãos sequestrados aos milhares para esse fim, principalmente nos Bálcãs, que se tornavam escravos do Sultão, eram convertidos à força ao islã e treinados militarmente a fim de defenderem seus sequestradores (e seu império).

Os EUA jamais foram um império. A China sempre foi um império. E o fim da hegemonia americana, tornada real pelo governo Trump (o que deveria fazer de Trump o herói involuntário dos “progressistas”), levará, não à extensão global do Império Chinês, mas à busca da hegemonia global pelo Império Chinês, aliado ao renascente Império Russo de Putin, que começou a ser construído com o ataque à Geórgia e a provincialização imperial de duas importantes regiões do país (Ossétia do Sul e Abkházia) em 2008, e seguiu com a ocupação da Crimeia em 2014 e o ataque geral à Ucrânia em 2022, cujo objetivo central era (e ainda é) a conquista de Kiev e a eliminação da independência e da soberania ucranianas.

A edulcorada “nova ordem mundial”, dita graciosamente “multipolar”, não será tão multi assim. Haverá dois impérios centrais, vários vassalos voluntários, com0 o Brasil e outras letras do BRICS, e a maior ou menor submissão de grande parte do mundo à hegemonia do Império Chinês, secundada pelo Novo Império Russo e apoiada por estados fascistas (sem aspas), como o Irã e a Coreia do Norte (o primeiro, representante do islamofascismo, a segunda, do esquerdofascismo).

Tal hegemonia não será benigna. Não apenas porque representa, de fato, uma Nova Ordem Imperial. Há impérios menos brutais, como o britânico, e mais, como o otomano. Mas sim porque os centros imperiais dessa nova hegemonia mundial, historicamente, são brutais. Digam-no os uigures do Xinjiang e os tibetanos, e os ucranianos, os bálticos, os poloneses e os judeus do antigo Império Russo. E os georgianos e ucranianos do novo império.

A hegemonia americana deixará saudades.

Essas saudades poderiam ser mitigadas por uma reascensão da Europa capaz de compensar, ao menos em parte, a perda da hegemonia ocidental com a perda da hegemonia americana. Se a Europa quase pós ocidental (e suas hesitações, dúvidas, dívidas, divisões, aporias e burocracias) ainda o quiser – e puder.