ANTOLOGIA DE TEXTOS TERRORISTAS (1789-1895)

 

1789

Dias Baptista, aluno de Vandelli no curso de Filosofia Natural, estuda a região de Coimbra sob vários pontos de vista, entre eles o faunístico. Ganha um prémio da Academia Real das Ciências com o trabalho. Fornece uma lista de répteis e anfíbios, nenhum se identificando com Chioglossa lusitanica.

Refª.: Manoel Dias Baptista, Ensaio de descripçaõ fysica, e economica de Coimbra, e seus arredores. Memorias Economicas da Academia Real das Sciencias de Lisboa, I.


1797

Vandelli publica uma lista dos répteis e anfíbios portugueses, na qual não aparece nenhuma espécie identificável com Chioglossa lusitanica. Só Lacerta salamandra, a salamandra vulgar, e Lacerta aquatica, o tritão comum, eram conhecidos como representantes da actual família Salamandridae.

Vandelli era lente em Coimbra, explorou pessoalmente a região, encarregou os discípulos de explorações em todo o país. Assina a descrição de uma nova espécie de réptil para a ciência, encontrado em Portugal, actual Blanus cinereus, um lagarto cego e subterrâneo. A descrição figura neste trabalho, comunicado à Academia Real em 1780, motivo pelo qual a espécie se referia antigamente como Amphisbaena cinerea Vandelli, 1780. Antes, Vandelli tinha descrito Dermochelys coriacea, a tartaruga-lira. Nem Vandelli nem Dias Baptista conheciam em Portugal mais do que a salamandra e o tritão vulgares. 

Refª.: Domingos Vandelli, Florae, et faunae lusitanicae specimen. Memorias da Acad. Real das Sciencias de Lisboa, I. 


1864

Bocage revela à ciência a nova espécie, Chioglossa lusitanica. A descrição foi publicada, como via dupla, em Londres e Paris. Vamos transcrever o artigo publicado em Londres quase na íntegra. É importante lê-lo, por ser o nosso eixo de referência, face à informação anarquista que os autores subsequentes vão prestar sobre a salamandra. Terá ainda a vantagem de exemplificar a retórica da descrição - caracteres considerados diagnosticantes.

 

CHIOGLOSSA LUSITANICA, sp. nov. (Pl. XXI.)

Caractères génériques: - Langue grande, oblongue, attachée antérieurement à la mâchoire inférieure, libre des deux côtés et en arrière, soutenue par un long pédicule qui vient se fixer au milieu de sa face inférieure. Deux rangées longitudinales de dents palatines, très-convergentes en avant, où elles arrivent presque à se toucher, très-divergentes en arrière, parallèles au milieu. Membres antérieurs tétradactyles, postérieurs pentadactyles; pollex antérieur et postérieur très-courts. Pas de parotides apparentes. Peau très-finement chagrinée, presque lisse. Pas d’arcade osseuse temporo-frontale.

Caractères spécifiques: - Corps allongé, arrondi, étroit; queue très longue, mesurant un peu plus des 2/3 de la longueur totale, arrondie à la base, un peu comprimée dans sa dernière moitié. Tête courte; museau très-court et arrondi; yeux gros et proéminents. Narines placées près du bout du museau, presque en dessus et assez écartées. Membres courts et grêles, les postérieurs plus longs; les doigts, ainsi que les orteils, un peu déprimés et légèrement bordés, à face palmaire lisse, mais avec les articulations des phalanges nettement accusées en dessus et en dessous par de fortes dépressions de la peau; le second doigt plus grand que le quatrième, le troisième le plus grand de tous; le troisième et le quatrième orteils égaux et les plus longs, le cinquième après le pollex le plus court.

Coloration. - En dessus, sur un fond noir-foncé ponctué de blanc, deux larges raies dorsales d'un beau rouge de cuivre doré se prolongent sur la queue en une seule raie, et vers la tête avancent en divergeant jusqu’aux yeux. Flancs, région du ventre et le dessous de la queue de la même couleur noire du dos, sur laquelle de nombreux points blancs, inégalement repartis et plus confluents par places, dessinent de tâches irrégulières laiteuses peu apparentes. La face inférieure de la tête et le cou, jusqu’à l’insertion des membres antérieurs, d’un brun clair uniforme. La face dorsale des membres de la couleur des flancs; la face inférieure brunâtre.

J'ai dit que les raies dorsales et caudales sont d'un beau rouge de cuivre doré; mais j'ai besoin d'ajouter qu'elles semblent peintes avec du cuivre en poussière fine mélangée avec un peu de poudre d'or. La nuance dorée est d’autant plus prononcée que les individus sont plus adultes. L’alcool a la fâcheuse propriété d’attaquer promptement cette couleur, et de la faire disparaître au bout de quelque temps.

Dimensions prises sur un individu adulte: -

 

millimètres

Longueur totale

142

" de la tête

11

" de la queue

95

" du membre antérieur

11

" du membre postérieur

13


.........Habitat. - Les premiers individus que j'aie vu de cette curieuse espèce m'ont été adressés de Coimbra en Mai de 1863, par mon ami M. Rosa. Ils ont été rencontrés aux environs de cette ville, dans le voisinage d’un bois de pins, et non loin d’une rivière; ils étaient cachés sous un amas de bruyères sèches. J'ai reçu cette année, en Janvier, un nouvel envoi de ces animaux; mais ceux-ci ont été pris sur la montagne du Bussaco, à cinc lieues de Coimbra: ils sont arrivés pour la plupart vivants, mais au bout de quelques jours ils étaient tous morts.

La singulière conformation de la langue de cet animal me semble un caractère générique assez important. Le pédicule osseux qui le supporte est assez long, il a bien 4 millimètres, et sur les côtés de son extrémité antérieure s’articulent deux branches cartilagineuses destinées à soutenir la portion libre de la langue. Chacune de ses branches, après avoir atteint, en se courbant en dehors et en arrière, le bord latéral de cette partie de la langue, suit exactement la direction de ce bord, et va finir sur le bord postérieur en le contournant. La langue n’est retenue le long de la ligne médiane, entre son attache antérieure et son pédicule central, que par du tissu cellulaire.

Par cette disposition de la langue, le genre Chioglossa me semble se rapprocher beaucoup des genres Bolitoglossa, Heredia, Geotriton; sa place dans un catalogue méthodique de l’erpétologie européenne doit être dans le voisinage des genres Triton, Euproctus et Geotriton, peut-être entre les deux derniers.

Ref.ª: J. V. Barbosa du Bocage, Notice sur un batracien nouveau du Portugal (Chioglossa lusitanica, nob.). Proceedings of the Zoological Society of London: 264-265. Est. XXI.

 Observações

1ª - Fixemos que os exemplares-tipo foram referidos a Coimbra. Coimbra é portanto a terra típica (dos tipos). E não foi Bocage quem descobriu no campo os animais. Rosa de Carvalho enviou-lhos em Maio de 1863, como tendo sido apanhados nos arredores de Coimbra.

2ª - Bocage estabelece afinidades entre a Chioglossa e outros géneros, entre eles Geotriton. Geotriton fuscus, depois Spelerpes fuscus, hoje Hydromantes i. italicus (há mais espécies e subespécies), pertence à família Plethodontidae, americana. É a salamandra do sul de França, Itália, Córsega, etc.. O género Hydromantes é da Califórnia. 


1864

“Não tenho dúvida em crer que o sapo de ventre cor de laranja é o Bombinator igneus; o espinhaço dele é mais alto do que as ilhargas do corpo e pode dizer-se que elas formam dois planos inclinados” […]

“Porém há homens que julgam que um Museu é um palheiro, que para se encher basta sair de casa, mandar apanhar a palha e deitá-la para dentro dele” […] “Aposto que o meu amigo tem por lá desta gentinha! Donde se conclui que a colecção zoológica no nosso Portugal tem espinhos, por ser julgada por juízes os mais ignorantes”.

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho para Bocage, Quinta do Espinheiro, 15 de Agosto. AhMB, CN/C-14.

Obs.: Não temos conhecimento de terem sido já encontrados em Portugal os sapos de ventre cor de fogo, Bombinator igneus, de que Rosa está a falar. Quanto aos espinhos da colecção zoológica, é claro que parte deles são endémicos do Espinheiro. Não podemos no entanto precisar a que quadrúpedes se destina a erva quando Rosa classifica como palheiros certos museus. 


1864

“A descoberta da Chioglossa fez com que eu, longe de ter ódio aos répteis, vá simpatizando com eles, menos porém com o sapo-vulgar e com a S. maculosa; dê-me alguém muitos contos de réis e que pegue eu nos tais sujeitos ainda mais do que hediondos animais!!!”. 

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho para Bocage, 22 de Agosto, s/l. AhMB, CN/C-15. 


1864

“Meu caro Amigo - O autor da natureza, sempre avaro em fazer nascer homens grandes, extraordinários, homens do século, foi pródigo nesta variedade em 1817, porque nasceu neste ano, e no dia de hoje, o grande José Maria Rosa de Carvalho, e no dia de amanhã o grande José Maria de Abreu. O primeiro nasceu para extermínio de todo o bicho vivo, e o segundo para derramar até nos cantinhos de Portugal a muita instrução que talvez tenha. Faço hoje 47 anos de idade e não me troco por alguém que tendo apenas 41 são os pais e mães de dores de cabeça, de costas, e das cólicas flatulentas, nervosas, de chumbo, de ferro, de cobre, de bronze, e talvez das de aço. Tenho saúde, e por isso os 47 não fazem em mim grande peso, e tanto isto é assim que bem vê a frescata com que o escrevo.”

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho para Bocage, 1 de Novembro, s/l. AhMB, CN/C-18.

Obs.: Bocage nasceu no Funchal, a 2 de Maio de 1823. Tem 41 anos nesta data. Rosa não se troca por quem geme de dores de antebraço e de Emys taurica. Franqueza total. 


1864

“As víboras que lhe mandou o Dr. Costa Simões são espécie que ainda lá não tinha? Não quer mais Chioglossa lusitanica? Peço-lhe veja em algum autor a descrição do cultripes fêmea para sabermos se esse grande que também mandei é a fêmea do outro. Se o tempo melhorar, vai o António ao Buçaco às salamandras; de hoje em diante hei-de atender melhor as salamandras, tritões verdes, pode ser que tenha confundido algumas espécies, julgando-as todas marmoratus. Também hei-de ver melhor as saramantigas, por causa do Lippotriton punctatus, para o não confundir com palmipes.”

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho para Bocage, 29 de Novembro, s/l. AhMB, CN/C-20. 


1864

“O António tem estado à espera da lua cheia para ir ao Buçaco às salamandras, o rapaz quer andar de noite para chegar lá mais cedo, e partir de lá mais tarde.

O Manuel tem continuado a apanhar a azeitona que está quase no fim.”

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho para Bocage, 13 de Dezembro, s/l. AhMB, CN/C-21.

Obs.: Ficamos satisfeitos por saber que Manuel Paulino de Oliveira também se ocupava de botânica. 


.........1866

“Hállanse bajo las piedras á orillas de los ríos y de los terrenos húmedos, las salamandras(1), Pleurodeles Waltlii, y Salamandra maculosa; corriendo en el fondo de los riachuelos el triton, Triton marmoratus”. 

Ref.ª: Vitor Lopez Seoane, Reseña de la Historia Natural de Galicia. Impr. de Soto Freire. Lugo.

Obs.: A nota (1) é manuscrita por Seoane em exemplar do opúsculo dedicado a Bocage: “(1) Chioglossa lusitanica? Bocage: y no Pleurodeles!”

Não há possibilidade de confusão entre Chioglossa e Pleurodeles, este é grande, feio, espeta as costelas para fora da pele; a Chioglossa é graciosa, pequena e delicada. Em 1866 ainda não havia Chioglossa na Galiza, Seoane recebeu instruções para a citar. Mais tarde dirá que a primeira vez que a viu foi em 1849. Estas informações visam fundamentar historicamente a presença das espécies em dado local - são muito antigas. Essa parece também a função da referência de Perez Arcas à presença de Chioglossa em La Serrota, mas pode acontecer outra coisa: tratar-se de introdução de híbridos, cujos descendentes só trinta ou mais anos depois exibem os caracteres relativos à descrição. 


1866

“Dou-lhe parte de que está sabida a história da Chioglossa lusitanica: o António das Salamandras disse-me há poucos dias que ela põe os ovos na terra molhada, próximo me mandava os ovos delas. Porém, indo por ratos não os achou por terem já nascido os girinos; apanhou grande porção destes, mas mando apenas 4 pois os outros morreram em casa por aquele bruto não achar quem mos trouxesse. Mandei-lhe uma grande descompostura e parece que me deixará. Tenho os três girinos em água-ardente; todos têm barbatanas, apesar de uns maiores do que os outros”.

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho para Bocage, 1 de Maio, s/l. AhMB, CN/C-27.

Obs.: Rosa não confunde brânquias com barbatanas, está é a usar o discurso mutante, que permite iludir com a verdade. Mas é das brânquias que está a falar? Se chama barbatanas à crista dorsal, então está a dizer que os girinos são híbridos mesmo, visto que na Península Ibérica todas as larvas de urodelo têm crista dorsal, excepto as de Chioglossa. Três, quando eram 4, é aviso. 


1866

“Meu caro amigo - Não sei qual o valor que se dá nos museus aos animais híbridos. Tenho obrigação de lhe participar o seguinte e o meu amigo responderá logo que esta receba. Um meu caseiro vendeu uma cabra para Eiras a qual era macho-fêmea, expressão vulgar que designa híbrida [...] Responda já para acabarmos de comer esta lebre.

Amigo sincero, o Bicheiro-Mor

Errata: Aonde se lê híbrida leia-se (hermafrodita) hymafordita, ou como com melhor ortografia se escreva”.

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho para Bocage, Espinheiro, 27 de Julho. AhMB, CN/C-30.

Obs.: Rosa está a dar a chave do código ortográfico, um dos aspectos do discurso mutante. O texto veicula sobrecarga de informação - gráfica e semântica. Mais ainda - revela uma função heterodoxa da errata: ao errá-la, reitera a informação sobre o hibridismo. Entre o híbrido e o hermafrodita há um elo de ligação biológica - o segundo pode ser consequência do cruzamento.

Quanto à cabra, Rosa ironiza decerto acerca da Capra lusitanica, endemismo estrito do Gerês, já no seu tempo “extinta”, de que só se conheceram seis ou sete exemplares - hymaforditas, ao que parece. 


1866

“Estava com grande empenho de ver os girinos da Chioglossa; o que me diz deles? Qual é o nome científico das Planorbis? Quer mais girinos da Chioglossa para o mês que vem? Julgo conveniente apanhá-los até Setembro para lhes notar as diferenças que fazem no tamanho. Nada de sapos nem de cobras. No paúl achei muitas Natrix viperina e torquata, porém nada de novo”.

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho para Bocage, 11 de Julho, s/l. AhMB, CN/C-31.  


1867

“Não pude ir ontem à caça da Chioglossa pois tive em casa gente de fora”.

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho para Bocage, Sexta-feira, s/l. AhMB, CN/C-35.  


?

“Mandei ontem outra vez o António às chioglossas para me trazer ou mandar girinos muito desenvolvidos; mandou-me destes pouco maiores, e grande porção pequenos. [...] Foram todos achados numa jeira de água, que vem a ser um bordo de terra amassada para suster a água que nasce numa pedra, e depois de junta a água rega-se com ela. As chioglossas põem os ovos na água nos bordos das jeiras. Não sei se as mães entram na água para pôr os ovos, pois é possível não entrarem nela depositando-os à superfície da água. Ainda não se achou nenhuma adulta dentro de água.

Não tem vindo objecto algum da Foja; talvez por o Manuel Paulino não ter escrito a pedir licença aos Ferreiras Pintos para deixarem lá caçar os criados da tal quinta”.

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho para Bocage, s/d, s/l. AhMB, CN/C-37.

Obs.: Bocage estava na posse de informações biológicas importantes, mas não publicou nada a não ser a descrição. Vai ficar estranhamente calado, mesmo quando lhe imputarem a descoberta da Chioglossa em locais onde não existe - Elvas e Sintra. O que Rosa está a contar nem em 1963 será oficialmente descoberto. Até quase aos nossos dias, os zoólogos dirão que não conhecem o modo de reprodução dela. Provavelmente, porque pode haver dois, ou ter a reprodução componentes mais importantes do que a oviparidade.

De outra parte, jeira, segundo o dicionário de Pedro Machado, vem do latim diaria, opera diaria - o trabalho de um dia, a jorna. E operário também provém de opera, como em Opus magnum, ou ópera de Verdi. Outros dicionaristas, além disso, acrescentam a quantidade de terra que os bois conseguem lavrar num dia de trabalho. Mas pode ser que, nalgum dialecto da carbonária coimbrã, jeira seja aquilo que costuma existir nas quintas e batatais e dá pelo nome vulgar de poça, o que não é propriamente o local mais indicado para habitação de uma espécie cavernícola.

Mesmo a dar barraca, Rosa lá vai embalando com O meu menino é de ouro.  


?

“Brevemente receberá muitos girinos da Chioglossa e dois cultripes fêmeas, que lhe hão-de ser entregues por um médico [...] O António das Salamandras continua bem comigo. Andava ele esgotando muita água que se tinha juntado numa terra quando viu na corrente muitos girinos que me parece são da Chioglossa e que se pode afirmar pertencerem a esta espécie. Quando vinham na água vi a todas barbatanas, porém depois que as deitei em água-ardente não lhas posso distinguir. O meu amigo lhas achará com auxílio de boas lentes. A água onde foram achadas esteve muito tempo estagnada e por isso houve tempo de porem melhor os ovos e nascerem os girinos. Quero dizer que não vieram de outra parte para ali. Vieram muitas Chioglossas de Monte Redondo mas nada de novo”.

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho para Bocage, s/d, s/l. AhMB, CN/C-40.

Obs.: Monte Redondo, que fica mais perto de Leiria que de Coimbra, é localidade novíssima na área de distribuição da Chioglossa, onde não temos conhecimento de já ter sido encontrada. Além desta importante informação, há outra: que novidades se esperava descobrir dentro da única espécie do único género Chioglossa? Terceiro ponto - em estado natural, esta salamandra é incompatível com regas, água estagnada, fado e ópera.  


?

“Mando também uns girinos da Chioglossa lusitanica num vidro com água-ardente, pois esses que mandei devem estar estragados com a demora proveniente da ida do meu Amigo para Cintra”.

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho, s/d, s/l. AhMB, CN/C-42.  


?

“Mandei o António a Monte Redondo às salamandras. Veio com um tumor em uma virilha pelos grandes saltos que deu pelas fragas da ribeira, e de salamandras nada de novo.”

Ref.ª: Carta de Rosa de Carvalho, s/d, s/l. AhMB, CN/C-44.


1869

Böttger estudou 5 exemplares coligidos pelo capitão Heyden (da Prússia) na Serra do Gerês. O naturalista Lukas von Heyden era amigo de Laureano Perez Arcas; nas palavras deste, Heyden andou em peregrinação pela Península Ibérica de Abril a Junho de 1868 (1).

Böttger compara os seus animais com a descrição e estampa de Bocage. O animal é pequeno, não são relevantes no desenho pormenores como pintas, para além de que nem pintas nem posição dos olhos são caracteres com valor diagnosticante. Os olhos das salamandras são laterais e não podiam sê-lo mais nem menos ou deixavam de ser laterais. Quanto à cloaca, fica em todos os anfíbios perto do nascimento das patas posteriores, tal como acontece com o equivalente sexual ou excretor noutros animais.

Então diz Böttger que nos seus exemplares os olhos se situam um pouco mais lateralmente, e que as pintas do terceiro e quarto dedos dos pés posteriores são mais pequenas, mas que a descrição de Bocage está correcta. A cabeça apresenta uma proeminência central e a cloaca situa-se muito longe do lugar onde começam as patas de trás. Quanto à coloração, os espécimes que estavam completamente mergulhados no álcool ficaram cor-de-rosa às riscas, e os que só estavam mergulhados pela metade encarniçaram, tomando uma tonalidade castanha.

Ref.ª: Oskar Böttger, Beitrag zur Kenntniss der Reptilien Spaniens und Portugal. Separat-Abdruck aus dem zehnten Bericht des Offenbacher Vereins für Naturkunde. Offenbach am Main.

Obs.: Mais importante que a descrição carnavalesca era saber o que andou a fazer o militar na Península. Está uma guerra franco-prussiana em curso, na qual Portugal declarou neutralidade.

Há no entanto um elemento importante na diagnose: ao contrário de Bocage, que escreve: Pas d’arcade osseuse temporo-frontale, o que parece corresponder a cabeça deprimida noutros autores, Böttger afirma que os seus exemplares têm um alto na cabeça. Também pode, claro, ser outra nascida qualquer - um galo, por exemplo.  


1874

“- El señor Perez Arcas presenta á la Sociedad tres ejemplares del Chioglossa lusitanicum Barb., anfibio característico de la fauna de la Península []. El señor Barbosa manifiesta que es posible que esta especie se encuentre más al Norte de Portugal, y en efecto, estos tres ejemplares proceden de los alrededores de Santiago de Galicia, donde los ha cogido y de donde le han sido remitidos por el catedrático de la facultad de Farmacia, el Sr. D. Jerónimo M. de Velado. El señor Perez Arcas añade, que cree existe tambien este curioso anfibio en la Sierra de Gredos, pues recuerda haber encontrado uno muy parecido en la Serrota, cerca de Villatoro, si bien por haberse extraviado el ejemplar, cogido mucho tiempo ántes que apareciera la descripcion del señor Barbosa du Bocage, no puede afirmarlo de una manera positiva”.

Ref.ª: Nota sem título. Actas de la Sociedad Española de Historia Natural, 102-103.

Obs.: Bocage não faz previsão nenhuma de que viria a encontrar-se a Chioglossa mais a norte ou mais a sul, mas ele publicou duas descrições originais da salamandra, o que é uma atitude bastante híbrida. 


ERRATA

Tivemos oportunidade, em 2000, de consultar a segunda descrição da Chioglossa, na biblioteca do Muséum National d'Histoire Naturelle de Paris. A descrição é quase igual no conteúdo e profundamente diversa em aspectos formais. Principais diferenças: Bocage acrescenta o tamanho do corpo, 36 milímetros, alarga a mais espécies a comparação da Chioglossa, e na secção habitat manifesta a esperança de que venha a encontrar-se mais a norte. Depois de referir que, além de Coimbra, tinham sido encontrados indivíduos também no Buçaco, escreve:

Comme les premiers, ils ont été rencontrés sous des feuilles mortes, et même cachés par des pierres. Ils sont, pour la plupart, encore vivants, après dix jours comptés de leur arrivée. La fig. 1 de la planche XXI représente très-fidèlement le plus grand de ces individus. J'espère que d'ultérieures recherches permettront d'assigner à cette espèce une bien plus large zone d'habitation, surtout dans le nord du pays.

Refs.: Bocage, J.V. Barboza du (1864) - Note sur un nouveau Batracien du Portugal, Chioglossa lusitanica, et sur une grenouille nouvelle de l'Afrique occidentale. Revue et Magasin de Zoologie Pure et Appliquée. 2e série, T. XVI, pp:248.254. Pl. 21.


Jerónimo Macho Velado foi o primeiro catedrático de História Natural do Instituto de Santiago. Um trabalho de herpetologia permitiu-lhe em 1849 alcançar o grau de regente de 2ª classe nessa cátedra: Conocimientos relativos a la organización de los reptiles (23).  


1876

Boscá escreve a Bocage, apresentando-se da parte de Ignazio Bolívar (publicou em Portugal catálogos de insectos das nossas colónias). Pede a Bocage que lhe identifique uma rã, de que só reconhecera o género, Hyperolius (24), encontrada dentro de um frasco com rãs tout à fait espagnoles, et c'est par cela que je la suppose de notre pays. Ce ne sera pas la première espèce d'Afrique qui se soit trouvée dans notre Péninsule.

Boscá enviou a rã africana de Espanha para Lisboa.

Ref.ª: Carta de E. Boscá. Madrid, 11 de Julho, AhMB, CE/B-24.

Obs.: Este gesto pode ter valor simbólico, contendo por isso uma informação útil: a de que o elemento estrangeiro usado para aclimatar rãs na Península Ibérica foram rãs do género Hyperolius. 


1877

Seoane afirma ter descoberto um exemplar de Chioglossa em 1849, nas ribeiras do Tambre, mas que não o determinara. Diz que El Sr. Barboza du Bocage, la observó en las inmediaciones de Coimbra y el Bussaco e agradece a Bocage os dois magníficos exemplares enviados que disiparam cuantas dudas pudiéramos tener acerca de nuestro hallazgo de Santiago.

Ref.ª: Víctor Lopez Seoane, Reptiles y Anfibios de Galicia. Anales de la Sociedad Española de Historia Natural, VI. 

Obs.: Pelos vistos, foi o próprio Bocage quem fez observações de campo. E que dúvidas podia ter Seoane para não publicar a descrição de uma novíssima espécie, por ele descoberta em Santiago de Compostela, antes de Macho Velado? Afinal, bem depois disso, parecia não distinguir o mostrengo do Pleurodeles waltl da gentil Chioglossa lusitanica.  


1877

Ch. lusitanicum Barbosa

Hab. Especie, al parecer, de mui reducida área geográfica.

Portugal. Coimbra, Monte Bussaco (Portugal), (Barbosa).

España. Santiago de Galicia, (Macho de Velado!); La
Serrota (Ávila), (Perez Arcas!).”

Ref.ª: E. Boscá, Catálogo de los Reptiles y Anfibios observados en España, Portugal é Islas Baleares. Anales de la Sociedad Española de Historia Natural, VI.

Obs.: Adiante, em vez de Arcas escreve-se Areas. Perez Arcas lançou areia aos olhos de outros. O nome Macho de Velado, que a seguir será só Macho, está a ser usado como criptograma. Macho, em castelhano como em português, significa mula, o mais clássico híbrido que se pode mencionar. Sobre a palavra mula se formou mulato, termo substituído hoje por híbrido. Macho de velado significa híbrido com véu, mascarado. Travesti, se preferirmos entender que Jerónimo se vestiu de mulher para atrair o Ch. lusitanicum. E podemos ver no véu uma alusão à venda iniciática, ou à Alta Venda, a que pertenciam as barracas e choças carbonárias. 


1877

Boscá escreve a Bocage, dizendo-lhe que vem a Lisboa, gostava de lhe falar e de ver as colecções do Museu da Politécnica. “Recibi su contestacion a proposito del Hyperolius, perdido por mi falta de precauciones, y por la que le doy à U. las mas expressivas gracias.”

Ref.ª: Carta de Boscá para Bocage, Ciudad Real, 4 de Maio. AhMB, CE/B-25.

Obs.: Em época posterior, Bocage vai dizer que as encomendas de Cabo Verde enviadas por Newton - com Tarentola gigas=T. borneensis (seja ou não a osga de Bornéu, a palavra borneensis quer dizer que é de Bornéu) de S. Nicolau e ilhéus Rombos, para onde nunca tinha sido citada, e aliás para S. Nicolau ainda não foi (citação nova, esta de Tarentola gigante para S. Nicolau) - se extraviaram. O mesmo fará à de Mabuya fogoensis e outros répteis mandados por Günther. Quando, já depois do Ultimatum e da assinatura do tratado com a Inglaterra, Bocage acusar a recepção da esponja das Filipinas (associada a Hyalonema lusitanica), Günther demonstrará o seu contentamento por Bocage, daquela vez, ter recebido a encomenda. Com Boscá, entretanto, estamos muito longe ainda do Ultimato. De outra parte, o CGRA (671) mostra que a rã não se perdeu. 


1879

Boscá colige 8 adultos, 5 jovens e 3 larvas de Chioglossa debaixo do musgo, à beira de cascatas de arroios, deduz-se que no monte S. Julian de Tuy, uma vez que ele faz questão de não dizer, mas o texto integra-se nos resultados dessa viagem. A seguir: Esta codiciada especie la venía buscando desde mi primer salida al campo de Oporto. Sólo la persuasion de que me encontraba de lleno en la region em que se habia descubierto por el ilustrado profesor y director del Museo Zoológico de la Escuela politécnica de Lisboa, el Sr. Barbosa du Bocage, pudo sostener en mí la suficiente constancia para registrar los parajes distintos hasta dar con ella.

Ref.ª: E. Boscá, Nota herpetológica sobre una excursión hecha en el monte S. Julian de Tuy. Anales de la Sociedad Española de Historia Natural, 8.

Obs.: Dois dados científicos de respeito: a localidade típica é hymafordita, S. Julian de Tuy/Porto. 


1880

Chioglossa lusitanica: Spanien (Santiago, La Serrota), Portugal (Monte Bussaco, Coimbra, Sierra de Gerez)”.

Ref.ª: J. von Bedriaga, Über die Geographische Verbreitung der Europäischen Lurche. Jahresb. uber d. Senckenb. naturf. Gesellschaft., 1878-1879, Moscovo.

Obs.: Bedriaga era um zoólogo respeitado. O mais importante da sua nota diz respeito a La Serrota, no centro de Espanha, onde a salamandra não existe (ainda), mas é importante que se pense que sim. 


1880

Seoane escreve a Bocage, comunicando que envia seis Pelonectes Boscai  M e F, um Alytes obstetricans Boscai, uma Vipera Seoanei, “exemplar detestable, medio desecado, por haberse evaporado el alcool, durante el tiempo que estubo mi coleccion en Paris, en cuya exposición obtubo medalla de plata”, mas não tem melhor. 

Fala de Pelias (=Vipera) berus. “Esta vívora, Pelonectes, Chioglossa, Alytes etc., hace muchos años que los poseía inéditos en mi colleccion, sin determinarme à publicarlos, por temor de que mas tarde bayan à pasar à la sinonimia, excepcion hecha de la Chioglossa, que tanto género como especie estan perfectamente fundados!”.

Ref.ª: Carta de Víctor Lopez Seoane. Coruña, 9 enero 1879, AhMB, CE/S-46. Bocage emendou 1879 para 1880. 


1880

Seoane pede a Bocage répteis e anfíbios da Península, em especial tritões e Vipera ammodytes, diz que os colegas espanhóis não lhe dão nada, ao contrário dos estrangeiros, que são generosíssimos, e que muito estranha que o Sr. (Paulino de) Oliveira faça coro com os seus compatriotas, não respondendo sequer às suas cartas.

Declara que Böttger e Peters têm assombrosa habilidade para criar novos táxones: com dois exemplares de Pelonectes, macho e fêmea, tinham fundado duas novas espécies. La Historia Natural es hoy dia un juego de niños, cuya juvenilidad estríba en tener mas ó menos juguetes.

Ref.ª: Carta de V. L. Seoane, Coruña, 22 abril. AhMB, CE/S-47. 


1881

Ch. lusitanica Barb.

Galice: rivages du Tambre (L. Seoane); Santiago (Macho!); Tuy!

Vieille Castille: La Serrota (Perez Areas).

Alemtejo: Elvas (Mus. de l'École Polyth. de Lisbonne)! Beira: Coimbra, Monte Busaco (Barboza). Entre Douro e Minho: Serra do Jerez (Heyden).”

Ref.ª: E. Boscá, Reptiles et Amphibiens de Portugal et Espagne. Bulletin de la Société Zoologique de France.

Obs.: Pela primeira vez, a Chioglossa aparece no Alentejo. Ou antes, uma Chioglossa com indicação de pertencer à herpetofauna de Elvas fora remetida a Bocage (25). Boscá veio a Lisboa, Bocage mostrou-lhe Chioglossa de Elvas. Os autores subsequentes tornam desdobrada-dupla a citação única - a salamandra também passa a viver no Alentejo em geral.

Escrita híbrida, além do macho e das areias - Jerez fica na Andaluzia. Busaco, não conhecemos. Antes, Boscá sabia o que era o Buçaco e até sentiu enorme necessidade de esclarecer que não ficava na Argentina. 


1886

A chioglossa habita de preferência as regiões montanhosas [...] As larvas nascem no mez de julho e medem ao sair do ovo 0,m033 de comprido. Em Hespanha é abundante na Galliza e Velha Castella, e em Portugal tem apparecido com frequencia no Alemtejo, Elvas e Beira. Accidentalmente foi encontrada no Bussaco pelo illustre entomologista dr. Manuel Paulino de Oliveira, e no Gerez em 1884 pelo nosso bom amigo e auctorisado botanico o sr. Alfredo Tait. [...] Gerez, o local privilegiado onde parece existirem todos os reptis de Portugal (26).

Ref.ª: Eduardo Sequeira, Distribuição geographica dos reptis em Portugal. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (6): 5.

Obs.: Notável exemplo de ironia no discurso científico. Em baixo, ficha do habitat da Chioglossa, segundo Sequeira. Comparar com a de Vieira, logo a seguir, para verificar que o discurso é ficcional - nada do que Vieira cita de Sequeira foi por este escrito, tudo faz parte de um complot:

“Genero Chioglossa, Bocage (1864)

Ch. lusitanica. Bocage.

Alemtejo (Bocage!) Gerez (A.Tait!) Bussaco (Paulino de Oliveira!)”

 Obs.: A medida dos ovos da Chioglossa, 33, significa o mesmo que 3 ou 21 da estampa da dupla descrição, que é igual a 2+1. Três e triângulo são assinatura maçónica. De outro lado, o Gerês não é o único local priveligiado, onde parece viverem todos os répteis e anfíbios de Portugal. Nos anexos a esta edição online, verá que o Alfeite, Porto e Coimbra é que são os reptiliários nacionais. 


1887

Chioglossa lusitanica, Bocage

Coimbra (Mus. Univ.).

Elvas (Mus. de Lisboa) segundo Bosca.

Cintra (Bocage!) segundo E. Sequeira. Penafiel (E. Sequeira!).”

Ref.ª: A. Xavier Lopes Vieira, Catalogo dos amphibios e reptis existentes actualmente no Museu Zoologico da Universidade de Coimbra. Annuario da Universidade de Coimbra, 1886-1887.

Obs.: É a primeira descoberta em Sintra, atribuída a Bocage, que não desmente, como não desmentiu Elvas. Bocage passava as férias na Villa Roma, em Sintra, com Teresa Roma, a mulher, e com o filho, Carlos Roma, que viria a ser ministro dos Estrangeiros numa época difícil: 1909, imediatamente antes da República. E talvez por isso Mattoso Santos, sucessor de Bocage na direcção, ao aperceber-se da catástrofe que se abatera sobre o Museu Bocage, não tenha podido fazer mais do que o inventário das ruínas. Foi sob a sua direcção que se elaborou o CGRA. 


1887

Böttger obteve espécimes de Coimbra, Buçaco e Serra do Gerês. Para completar a distribuição, recorre às fontes, em especial à desdobrada-dupla: “Alemtejo (Barboza). Elvas (Boscá)”.

Ref.ª: O. Böttger, Verzeichniss der von Hrn. Dr. Heinr. Simroth aus Portugal und von den Azoren mitgebrachten Reptilien und Batrachier. Sitzungsberichte der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften zu Berlin, XII. 


1889

Bedriaga diz que a Chioglossa é rara em Espanha. C'est en 1864, sur la montagne de Bussaco, à quelques lieues de Coimbra, que M. Rosa a découvert cette espèce. Depuis cette époque M. M. Moller, Paulino de Oliveira et Simroth l'on trouvée en assez grand nombre dans les environs de Coimbra. M. Boettcher l'a eue de la Serra da Estrela et dans la province Entre Douro e Minho elle a été capturée par M. de Heyden. M. Bosca nous informe que le Musée de Lisbonne l'a reçue de Elvas (Alemtejo).

Ref.ª: J. de Bedriaga, Amphibiens et Reptiles reccueillis en Portugal par M. Adolphe F. Moller. O Instituto (2), 31.

Obs.: Böttger obteve exemplares da Serra da Estrela, embora o não tenha confessado e não venha a desmentir Bedriaga.


1892

O Museu de Lisboa, depois da publicação de uma lista de Bocage, em 1863, e da descrição da salamandra, só agora volta a ocupar-se dos répteis e anfíbios portugueses. Catálogo:

a) ad. 0m,145 de compr. Coimbra (Roza de Carvalho).
b) c) d) quasi adultas, Coimbra (Roza de Carvalho).
e) muito novo, Bussaco (Roza de Carvalho).
f) ad. Coimbra (Roza de Carvalho).
g) gyrinos, Bussaco (dr. Paulino de Oliveira).
h) gyrinos, Eiras.
 

“Em 1864 dotou o sr. professor Bocage a herpetologia nacional com o conhecimento de uma forma curiosissima que é um genero e uma especie completamente novos, pertencentes à mesma familia, a Chioglossa lusitanica Bocage, e que com a maior probabilidade é exclusiva da peninsula iberica e talvez só encontravel em Portugal”.

Ref.ª: Bethencourt Ferreira,  Revisão dos Reptis e Batrachios de Portugal. Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, Academia Real das Sciencias de Lisboa (2), II: 8. Id. Ibid. (cont.), 1893, III: 9.

Obs.: Os indivíduos de Coimbra coligidos por Rosa deviam ser tipos. O de Elvas já desapareceu, e não figuram os girinos enviados por Rosa. Bettencourt Ferreira não confia em nenhum dos seus colegas, visto que só aceita a existência da salamandra em Portugal. De outra parte, a sua atitude é forçada. Nunca há nele a naturalidade da postura de um Rosa, Paulino de Oliveira, Sequeira, Vieira, ou mesmo Goux, já nos nossos dias. O que Bettencourt Ferreira escreve soa a falso. Em termos literários, diríamos que, ao contrário dos colegas, não consegue criar a ilusão do real. É aquilo a que se chamaria um mau escritor. Mas por isso mesmo a sua posição no jogo é desconcertante, ainda não conseguimos perceber de que lado está.

ERRATA: Estava do lado de Teófilo Braga.  


.......1893

Só agora o Encoberto descobre a salamandra: “No es difícil encontrar el curioso anfibio Chioglossa lusitanicum Barb. en los sitios humedos y próximos á los arroyos, entre los detritus vegetales”.

Refª.: Jerónimo Macho Velado, Recuerdos de la fauna de Galicia. Insectos lepidópteros observados en dicha comarca. Anales de la Sociedad Española de Historia Natural, Serie II, Tomo Segundo. 


......1894

“Em 1890 tive occasião de observar na Serra do Gerez, proximo a Leonte, um exemplar da Chioglossa lusitanica, Bocage. O meu amigo o snr. Alfredo Tait disse-me tel-a também encontrado na sua propriedade, junto às Caldas do Gerez.”

Ref.ª: Adolpho Frederico Moller, Notas sobre a fauna da Serra do Suajo. Annaes de Sciencias Naturaes, Porto, I. 

Obs.: O Barão de Soutelinho tem uma propriedade no Gerês, origem provável das espécies críticas no Parque. Moller invadiu o território do leão, para lhe oferecer em casamento a salamandra. O Romeu da Julieta Rotschild também era leonino. Leonte é lugar simbólico no Caminho de Santiago - fogo já temos que sobre, só nos falta a concha e beber a água.


.......1894

Wilhelm Tait entra na operação, dizendo que a 18 de Março encontrara um bonito exemplar do pequeno e raro anfíbio perto da estação de Custoias, do caminho de ferro da Povoa; que o irmão, Alfredo, encontrara dois juvenis a 23 de Março nas margens do rio Coina, perto da antiga ponte do Padrasto, não muito longe de Oliveira de Azemeis. Segundo lhe constava, o Chioglossa só era conhecido do Gerês (A. Tait), do Buçaco (Paulino de Oliveira) e do Alentejo (Bocage). Assim se prova (com o Alentejo, obviamente) que razão tinha o Dr. Egid Schreiber ao prever que a distribuição do Chioglossa era mais setentrional do que se pensava.

Ref.ª:  Wilhelm C. Tait, Habitat do Chioglossa lusitanica. Annaes de Sciencias Naturaes, Porto, I: 96.

Obs.: O Chioglossa anda a passear pela linha do Norte. Se recuarmos à história de Newton e do casamento de Romeu e Julieta em 1892, o ministério caiu por incapacidade de resolução dos problemas levantados com os caminhos de ferro. Lendo o Commercio do Porto da época, verifica-se que os ferroviários promoviam romarias aos santos que ficavam ao longo da via férrea, agindo como empresa turística. Não reparámos se também as promoviam ao Entroncamento.


......1894

Moller responde à provocação: o seu amigo Tait esquecera-se de Coimbra, onde o anfíbio era vulgar. Para prova, menciona os trabalhos de Bedriaga e Vieira. Omite Bocage. Não toca no Alentejo. Especifica as localidades onde fora mais encontrada a Chioglossa, nos arredores de Coimbra: “differentes pontos de Valle da Ribeira de Cozelhas, Cazal do Frade, Ribeiras de S. Paulo e Eiras”.

Ref.ª: A.F. Moller, Habitat da Chioglossa lusitanica. Annaes de Sciencias Naturaes, Porto, I.

Obs.: Crespo (1971) vai considerar a Ribeira de S. Paulo uma localidade indeterminada. Ferreira & Seabra (1911) citam Moller assim: “Casal do Frade, R. de S. Paulo, Vale da R. de Cazelhas”. Casal e frade são duplos, e além disso frade é irmão. Os carbonários tratavam-se por Bons Primos, os maçons por Bons Irmãos.

A Carbonária Lusitana fundou-se em Portugal em 1848. Em Coimbra, delegado do fundador foi o Ganganelli, Padre António de Jesus Maria da Costa, que vivia na sua quinta de Coselhas, onde se reuniam os membros da Alta Venda (3). 

Se bem que para a zoogeografia o habitat seja irrelevante no caso de espécies introduzidas, e só por isso estes homens se permitem jogar com ele, as cartas militares assinalam a existência de uma ribeira e de um ribeiro de S. Paulo na zona de Coimbra. O problema resulta talvez de que as localidades indicadas por Moller não são adequadas para habitat da Chioglossa.  


1894

Moller não encontrou Chioglossa, mas observou “Triton marmoratus Barb. du Boc.”, espécie cuja descrição é da autoria de Latreille. A que se deve a chalaça? A que, cruzando Triturus marmoratus com Triturus cristatus, se obtém um híbrido fértil, Triturus blasii? Ou insinua que a Chioglossa resulta de cruzamento de outra espécie com T. marmoratus?

Outra graça de Moller diz respeito à cobra com asas que se conta existir na região minhota. Para ele, a serpente emplumada é uma lagartixa, ou talvez a Vipera berus, se não for o “Chamaeleo vulgaris Cuvier var. A. (C. linereus Aldrov., Lacerta chamaeleon L.), que habitando principalmente na costa mediterranea da Africa septentrional, tem tambem sido encontrada no meio dia de Hespanha e na Sicilia”. Não satisfeito com tanta hipótese extraordinária, Moller ainda imagina mais esta: “Ou tratar-se-ha antes de uma especie de Draco ainda não determinada?”

Ref.ª: A. F. Moller, Uma excursão à serra de S. Gregorio. Annaes de Sciencias Naturaes, Porto, I.

Obs.: Ainda não temos concha, mas já apareceu o dragão alquímico.

Moller satiriza vários aspectos da zoologia, entre eles os sinónimos: ao longo do tempo, as espécies mudam de nome, acumulando os antigos na sinonímia que, nas espécies mais críticas, chega a ocupar uma e duas páginas.

Os camaleões foram introduzidos voluntariamente em Portugal, decerto pelos naturalistas desta geração, pois ainda não figuravam na lista de Vandelli. Não se chamavam C. linereus, sim Chamaeleo cinereus Aldrovandi - Moller transmutou a cor em riscas e fala de variedades, significando isto que a espécie vulgaris de Linereu, para se aclimatar, precisou talvez de ser hibridada.

Os lagartos do género Draco são os dragões voadores. Não existem (ainda) na Europa. Vivem numa zona crítica, a Insulíndia. Crítica porque, quando se insinuam laços de parentesco de espécies europeias ou africanas com espécies de outro lado, em geral esse lado é Timor, Java, Bornéu, etc.. Newton também deu esta pista com as suas manilhas dos papuas de Bissau. Um dos naturalistas que trabalhou este grupo de animais foi Gray. Pertence-lhe a autoria da descrição de Dracunculus maculatus, na sinonímia do que já se diferenciou em subespécies como Draco maculatus maculatus (Gray, 1845), da Tailândia e da Malásia.  


......1895

“A Chioglossa lusitanica, Boc., sabemos que foi encontrada perto do Porto e de Oliveira de Azemeis, isto é, no norte de Portugal, conforme o previra Schreiber”. Entra no Museu Bocage mais um exemplar: “Chiglossa lusitanica, Boc.. Porto (A. Fait).”

Ref.ª: J. Bethencourt Ferreira, Additamento ao catalogo dos Reptis e Batrachios de Portugal. Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, Academia Real das Sciencias de Lisboa (2), III: 12.

Obs.: Se Tait mutou para Fait, a Chiglossa perdeu o carácter O, com todas as consequências linguísticas previsíveis. O nome - kios+glossa - significava língua branca. Sabendo Bettencourt Ferreira o que se passa, esperava-se dele uma posição congruente com o consenso, que pretende impor a Chioglossa como espécie ibérica e não apenas lusitânica. O exemplar que usámos do seu artigo tem correcções manuscritas, mas nem a Chiglossa nem o Fait foram emendados, o que só se pode entender como acto voluntário. Então se sabe que a Chioglossa é um híbrido, também sabe que está e estará nos lugares onde a deixarem, o que inclui toda a Península Ibérica e o que o futuro lhe reservar. Em 1937 vamos encontrá-lo a defender a teoria da independência da fauna lusitânica, sendo a relativa exclusividade da Chioglossa em Portugal um dos argumentos para a defender. Se não é inteligível o interesse científico em faunas (politicamente?) independentes, ainda é menos inteligível que se defendam teses independentistas com argumento em espécies estrangeiras. A relutância em aceitar a presença da Chioglossa em Espanha é um dos motivos pelos quais Seoane vai pressionar o Museu de Lisboa a publicar um catálogo da herpetofauna ibérica.  


.......1895

Mi distinguido amigo: si me fuere rechazada como otra caja que se perdió, remitiré hoy à ese Museo mi primer envio de reptiles y batraccos.

Seoane ainda não sabe se a caixa foi ou não rechaçada pelo inimigo e já está a repetir o ataque. Entre outras, ameaça enviar Vipera berus de Ferrol; Lacerta Schreiberi, Seoane, Ferrol. “7 exemplares de todas las edades, denominadas Lacerta Schreiberi Bedriaga y Lac. Gadowii Boulenger. Como yo he reconocido el error, creo tener el derecho, al conservar el respetable nombre de Schreiber, à la especie, añadir mi nombre, como el que há descrito la verdadera especie y hecho conocer el error de los hace citados.” Acrescenta Rana esculenta Perezi, Seoane, Ferrol e Rana temporaria parvipalmata, Seoane, Ferrol.

Confessa-se perplexo por a caixa ter sido “rechazada”, tinha-a deixado com o Sr. D. Santiago Gorea (ou Govea), de Tuy, para ser entregue a Bocage. Se no meio de Gorea figurasse o carácter B, tínhamos em cena a via de Gorbeia, meio de correspondência entre os carbonários em Espanha. Mas verdade se diga que Seoane não ia denunciar um correio secreto, mencionando-lhe o nome real.

Ref.ª: Carta de Seoane para Bocage, Coruña, 19 de Abril. AhMB, CE/S-49.

Obs.: No Ferrol (Corunha, Espanha) existiu, na obediência do Grande Oriente Lusitano Unido, a Loja Asilo de la Vertud, nº 82, do REAA, que trabalhou de 1873 a 1885 (Oliveira Marques) (7).  


.......1895

Seoane cumpre a ameaça, atacando com o envio de uma colecção de 204 exemplares de répteis e anfíbios a Bocage, da Europa e Argélia (a Argélia deve trazer água no bico, só uma espécie de lá veio, Acanthodactylus erythrurus, lagarto que também existe na Península), exibindo como garantia de autenticidade os nomes de Montandon, Schreiber, Lataste, Héron-Royer, Boulenger, Camerano, Strauch e Günther, além do seu. A questão da autenticidade levanta-se com frequência nos textos de Bocage. Autenticidade significa que o exemplar que se diz ser de Coimbra pertence de facto à fauna de Coimbra, e que não foi falsificado - não é algo como as conchas a que limava a abertura para ficar maior, ou a que acrescentavam espirais.

Envia 23 exemplares de Chioglossa, machos e fêmeas, de Cabañas (Coruña), e em nota acrescenta mais 6, vivos. Bettencourt Ferreira nunca mais poderá negar a existência da Chioglossa em Espanha, por muito que não acredite nisso.

De outra parte, a quantidade de animais é imensa, se atendermos à escassez do que existia nos museus e às observações dos naturalistas, que dizem ter visto um adulto aqui, encontrado outro além. Não é precisa tanta quantidade se a procedência é a mesma. Se fossem 29 exemplares de vários pontos de Espanha, La Serrota incluída, já o caso mudava de figura. Quantidade, nesta situação, significa boa amostragem: se no lote de Cabañas havia diferenças grandes entre os animais, o seu hibridismo ficava logo patente. E então não se trata de ser generoso ao dar muito, sim de obrigar a ver, o que equivale a pressionar com um “Saiba que eu sei”. Por isso Bocage se recusa a admitir que vê o que o correio lhe vai trazendo e sistematicamente se desculpa com os extravios. Exemplares (quatro?) de Chioglossa remetidos por Seoane são os únicos que figuram no CGRA. Isto é, em 1915 não havia espécimes de Portugal na colecção do Museu Bocage.

Diremos, com o documento à frente, que Seoane enviou 204 exemplares, representando uns cinquenta táxones, todos numerados, identificados pelo nome científico e do autor, localidade e ofertante ou colector. Coligidos por Seoane, há indivíduos de:

Triton Boscae - Galicia
Pleurodeles Waltlii - Madrid
Chioglossa lusitanica - Cabañas
Salamandra maculosa - Cabañas
Pelobates cultripes - Madrid
Alytes obstetricans - Santiago, Galicia
Hyla arborea var. meridionalis - Coruña
Hyla Perezi - Sevilla
Discoglossus pictus - Galicia
Rana esculenta Perezi - Galicia
Rana temporaria parvipalmata - Galicia
Bufo vulgaris - Galicia
Bufo calamita - Galicia
Pelias berus - Galicia
Caelopeltis lacertina - Madrid
Tropidonotus viperinus - Madrid, Galicia, Sevilla
Tropidonotus natrix - Madrid
Tropidonotus natrix var. astreptophorus - Galicia
Rhinechis scalaris - Madrid
Coronella austriaca - Orense
Anguis fragilis - Galicia
Seps chalcides - Galicia
Acanthodactylus vulgaris - Badajoz
Psammodromus hispanicus - Madrid
Lacerta muralis - Madrid, Sevilla, Pirineos
Lacerta muralis Bocagei - Galicia
Lacerta ocellata - Coruña
Lacerta ocellata iberica - Madrid, Sevilla
Lacerta schreiberi - Galicia

Ref.ª: Colección de batracios y reptiles de Europa, remitidos en abril y mayo de 1895 al Museo zoológico de Lisboa por D. Víctor Lopez Seoane, Abogado y Comisario Régio de Agricultura, Ind.ª y Com.º. AhMB, Rem.-280.