...........ALQUIMSTAS E MAÇONS O discurso acerca da Chioglossa apresenta duplo registo, real e imaginário, revelando assim a sua dupla origem. Se aceitarmos as sugestões de Boscá, Paulino de Oliveira, Moller, Goux e Aellen, resulta do cruzamento de indivíduos de uma espécie da família Plethodontidae, americana, com um tritão ou salamandra autóctones. Provavelmente Triturus marmoratus, um tritão, pois é ele que nos surge em situação crítica ou de chalaça. No Bom Jesus de Braga, conta Eduardo Boscá que observou Triturus marmoratus, e que por várias vezes os animais o tentaram morder. Não é nada comum esta situação, os anfíbios não atacam as pessoas, a menos que Boscá tivesse pregado alguma partida aos bichinhos e fosse esta a maneira mais simples de o declarar. As salamandras da família Plethodontidae não têm pulmões, os seus hábitos vão de crepusculares a nocturnos e habitam grutas e cavernas. A Chioglossa não tem pulmões e é nocturna. O género Hydromantes (família Plethodontidae), californiano, existe em França e na Itália. Tal como na Chioglossa, a língua assenta num pedículo que permite aos animais projectarem-na para capturar a presa. É a característica anatómica mais relevante desta salamandra, motivo pelo qual Bocage escolheu para o nome do género uma palavra que em grego significa língua - glossa. Modo de os autores revelarem a natureza dúplice da Chioglossa é tocando-a com a varinha esotérica e tornando caóticos os dados fornecidos sobre ela - a terra típica é tudo menos o que na origem foi dado como tal (Coimbra), e chega a deslocar-se para a Galiza; há datas paradoxais; uns dizem que é abundante, outros que é rara, e outros que é rara embora vulgar; certas fontes, colheitas e localidades de colheita são imaginárias; a área de distribuição populacional é dupla: húmida/realista (norte de Portugal e noroeste de Espanha), seca/imaginária (Alentejo e La Serrota, Castela-a-Velha); o modo de desenvolvimento dos girinos também é duplo: umas larvas são aquáticas, outras terrestres; houve alteração e mesmo inversão total de conceitos básicos de geografia: Coimbra e Buçaco deixam de pertencer à Beira, a Serra da Estrela desce para sul de Castelo Branco, o Alentejo delimita a sua área de distribuição mais setentrional. Pelo meio da Babel, há quem precise de garantir que o Porto se situa no norte do país. A reprodução também é dupla, há no mínimo dois períodos de postura por ano. Duas são ainda as famílias a que pertence (o que não é possível a não ser em híbridos). Para evidenciarem a inconstância dos caracteres biológicos, os autores recorrem à escrita híbrida. Investem significado em topónimos e antropónimos. É o que acontece no cumprimento - Saudinha! A localidade é imaginária, está em vez de Sandinha. Aqui e ali, há irrupção da simbólica alquimista, o que identifica a maçonaria. A salamandra já por si tem carga esotérica muito forte, ela é híbrida de quente e frio, seco e húmido, água e fogo. Segundo Fulcanelli, a palavra salamandra significa sal de estábulo, sal de rocha ou sal de gruta. Em suma, sal, e o sal, mesmo quando é apenas verbo, pode queimar. Manifestação do fogo, a salamandra vive nele e extingue-o, por ser flama de água. Para os alquimistas, representava a pedra fixada ao rubro e era também o nome de um dos mais importantes elementos da Obra, o enxofre. Alguém porá uma pitada de S na língua da salamandra, o que torna imperioso o seu aparecimento no Ribeiro do Inferno. Depois, já não espanta que de carbonária se transmute em rosa. Rosa é aliás o nome associado ao descobridor dela, e não só Rosa como Rosa de Carvalho, e ainda José Maria - nada de mais simbólico na linguagem botânica dos carbonários, de um lado, e de mais híbrido, de outro. A gruta é espaço habitual de montanha. Montanha foi a organização carbonária criada por Luz de Almeida. Havia sectores ligados a operações de montanha, e a Chioglossa é classificada como animal montícola. Então, se alguém disser que foi observada em algum campo de batatas, o mais natural é essa pessoa estar a querer endrominar-nos, mas com a verdade - ela está a ser criada artificialmente numa quinta. Em vez de gruta os naturalistas optaram pela mina, e o que há na mina a não ser a matéria-prima da obra alquímica? A salamandra é o enxofre, tal como o ferro simboliza Marte, deus da guerra. E onde o ouro da transmutação? No volfrâmio das minas achavam-se pepitas de ouro, mas a Opus magnum em que estes homens laboram é a República. Talvez só por deslumbrada inocência, Bocage vai repetir que a Chioglossa apresenta duas riscas no dorso pintadas com pó de ouro, e hoje ela é chamada salamandra dourada, quando antes não tinha nome vulgar (nome desconhecido do vulgo, inominada; inominável é o terrível ou estranho à experiência quotidiana, estrangeiro) ou a designavam por salamandra preta, por ser carvoeira e fusca (Spelerpes fuscus). A imagem do pó de ouro subsistirá como carácter dominante em várias descrições subsequentes. Num desenho recente dela, a cor é a da encarnação, Rosa. As riscas serão motivo de ironia. A história vai acabar nas antigas minas de ouro romanas de Valongo - os alquimistas não só sabiam que nem tudo o que luz é ouro, como fabricavam o ouro dos tolos. Vamos vê-la em situação de peregrinatio, solitária como o hermita, outras vezes rodeada de companheiras, se não bailando eno sagrado em Vigo, fugindo, com agilidade mais própria de lagartixa, perto daí - Bom Jesus de Braga, S. Julian de Tuy, Santiago de Compostela, Fonsagrada. Tudo lugares visitados pela relíquia ou pela sagrada família. Relíquia é uma espécie sem parentes próximos no mundo actual, mas é também romance do tempo. A relíquia de Eça de Queirós era a camisa interior de uma meretriz. Os autores jogam com certos conceitos, expressos por palavras polissémicas, caso de família. As maiores revelações sobre a Chioglossa incidem na família a que pertence. Nenhuma espécie pertence a duas. Se insinuam que pode não ser assim, então é porque não estamos a lidar com espécies, sim com híbridos, resultantes de pecaminosas relações íntimas entre indivíduos de famílias diferentes. Vários naturalistas pertencem à família de escritores, por laços de sangue (Bocage, Lopes Vieira, Nobre), amizade, confraria ou opção política, o que não é irrelevante para a apreensão do hibridismo científico-literário do discurso. O Bocage zoólogo é primo em segundo grau de Bocage poeta. Cada autor acrescenta novo habitat para a ciência, o que dá a ideia de por um lado haver passagem de testemunho (introdução e não descoberta; os autores raramente dizem que apanharam ou coligiram, eles falam de encontro - em geral, o encontro marca-se), por outro de ir sendo citada sempre mais longe - de Coimbra, o que leva a perguntar se alguma vez ali existiu fora do humano espaço das quintas e casais de frades. Os zoólogos previram que seria descoberta mais longe ainda, para norte, para nordeste e em altitude, o que implica profecia, e já cumprida. Mais apocalipse (iluminação, revelação) não se pode exigir à ciência, e neste enquadramento há dois santos velados, pilares da maçonaria, os dois S. João (6); revelados, há S. Paulo e S. Gregório, pelo menos. O híbrido Bom Jesus não podia faltar, a salamandra é sal de estábulo. É citada para caminhos, estações de comboio, espaços turísticos dominados pela flora exótica - Sintra, Buçaco, Caldas do Gerês -, e pontos de escala nas rotas de Santiago de Compostela. Também foi referida para uma cidade fronteiriça importante, na via de Madrid, passando por Ávila, cidade de Santa Teresa - "Ó Elvas, ó Elvas, Badajoz à vista!", nas palavras de poeta consagrado em Coimbra nesses anos, o Conde de Monsaraz. A fronteira é diferente do limite, instaura um terceiro espaço, habitualmente franco, onde a liberdade de trânsito produz mistura. Saltando a fronteira, a Chioglossa perde o direito a considerar-se endemismo lusitanico. Convenhamos em que o cenário nada tem de natural. Ao natural, em vez de artificial, que tem conotação pejorativa, preferimos opor artístico ou cultural. A introdução da Chioglossa é uma obra de arte. A data mais antiga a que se reporta o seu conhecimento localiza-a nas ribeiras do Tambre, junto ao Sar dos cancioneiros galaico-portugueses. No lugar de Ferreiros, os peregrinos iniciam a corrida ritual até avistarem as torres da catedral de Santiago. Não há citações da Chioglossa para Ferreiros, mas Ferreira encontrar-se-á com ela em Águas Férreas. O ferro é um metal vulgar, a transmutar, como o chumbo. Mas ele é também o instrumento da transmutação. Mudar pelo ferro e pelo fogo não é uma operação de engenharia genética.
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