O ABUSO DA METÁFORA EM BIOLOGIA
E SEUS PERIGOS
Arquivos do Museu Bocage, Série D
Extensão Cultural e Ensino, II (3), 1986


A ontogénese do cérebro não se realiza sem o mundo, que ele em parte assimila e reinventa sob forma simbólica - que é cultura, forma de adaptação à realidade circundante. Daqui resulta que o conhecimento que formamos da realidade depende, em grande parte, da nossa linguagem, da sua estrutura e forma, das palavras inventadas, dos significados atribuídos, das analogias fantasiadas, etc.. Ora no que concerne a biologia, certos sectores desta ciência assentam hoje numa retórica tão metaforizada que as suas relações com o real me parecem falseadas, com reflexos perigosos sobretudo a nível da sua integração na cultura e no ensino a todos os níveis. Artigos sérios em jornais sérios têm, por vezes, titulos bizarros, como por exemplo «Lagartos lésbicos», como se pode ver num artigo editorial de apresentação a outro artigo sobre a origem do comportamento sexual («Lesbian lizards» : in Psychoneuroendocrinology, vol. 7 (4): 257, 1982).

A luz do espírito é um exemplo de expressão metafórica em que, como diz Cândido de Figueiredo (Dicionário da Lingua Portuguesa) «a significação natural de uma palavra é substituida por outra significação que lhe não é aplicável senão por comparação subentendida». Ora se o uso de metáforas parece ser, por vezes, uma necessidade em biologia, o seu abuso é condenável e deve ser denunciado por conduzir frequentemente a confusão, por instilar no leitor desprevenido falsos conceitos, sentidos errados, distorções da realidade. É certo que a metáfora se revela útil em diversas situações, ou porque encurta uma descrição, ou porque condensa ou sintetiza um pensamento. Mas a metáfora não é só analogia de significações, de objectos, de fenómenos ; com a metáfora pretende-se ir mais longe: descrever e penetrar na realidade biológica, apreender-lhe o sentido profundo. Aí reside o perigo do seu abuso, agora tão frequente. Impressões intuitivas não devem confundir-se com ciência. É certo que adaptar continuamente a linguagem ao progresso do conhecimento científico, à ampliação do mundo cultural, é uma necessidade permanente e seguramente que um dos meios mais importantes para o fazer é o recurso à metáfora. Em biologia, como noutros ramos do saber, há ideias para a formulação das quais faltam palavras adequadas, de modo que em regra se procuram outras já existentes conferindo-lhes um significado alargado, mas tantas vezes tão estranho à essência da ideia ou fenómeno descrito que o seu significado fica falso, ou vazio de conteúdo o termo utilizado. E a sua repetição descuidada leva ao resultado de se dar aparência de coisa real ao que começou por ser ingénua ou tendenciosa analogia. E assim, estas aproximações e identificações geram muitas vezes perigosas metáforas e lances de retórica. Impõe-se que se combata este vício. Mas, estranhamente, são raras as referências críticas que o denunciem de forma inequívoca.

A METÁFORA EM DARWIN

Inúmeros exemplos deste descomedimento podem ser observados na sociobiologia. Mas não é só nesta disciplina que o facto se verifica. Pode dizer-se que largos sectores da biologia estão corrompidos por esse mal. A utilização abusiva da metáfora provém, em grande parte, da dupla tendência generalizada de antropomorfizar a natureza e zoomorfizar a sociedade humana. Charles Darwin utilizou constantemente algumas metáforas na elaboração da sua teoria. Deve notar-se que ele tinha consciência desse facto, mas não, talvez, das ambiguidades da sua utilização. Por exemplo, chama a atenção do leitor para o valor explicativo da expressão «luta pela vida» (struggle for existence) que confessa utilizar metaforicamente, num sentido largo. A expressão «selecção natural» é igualmente metafórica, à qual Darwin emprestou uma espécie de acção providencial a trabalhar para a melhoria de cada organismo todas as vezes que tem ocasião para isso, numa acção silenciosa, sem se dar por ela, como ele escreveu. No seu esboço de 1842, Darwin refere-se à selecção natural como um «ser infinitamente mais sagaz do que o homem (não um criador omnisciente», que exerceria o seu poder selector e a sua providência ao serviço de «certos fins», durante milhares de anos. Tudo isto demonstraria em Darwin uma espécie de compromisso, na explicação da natureza, entre o positivismo, a que conscientemente obedeceu, e o seu pendor pronunciado para o antropomorfismo, para personalizar a natureza.

RETÓRICA INUNDANTE

A sociobiologia está hoje inundada por expressões metafóricas. Além da venerável «sobrevivência dos mais aptos», temos as «estratégias», os «egoísmos», os «altruísmos», as «malevolências», os genes «maus», «bons», «inteligentes», e «egoístas» ; a «batalha» dos genes, o «escravo», a «exploração», a «fêmea adúltera», a «violação», o «marido enganado», o «intrujar», a «timidez», os «custos» e os «benefícios», e tantas outras metáforas aplicadas a biomoléculas e a animais, num desenfreado antropocentrismo. Em substituição do vocábulo «altruísmo» foi proposta a expressão «social donorism» (G.C. Williams e O. C. Williams), mais neutra, com menos carga emocional. Mas o resultado foi, segundo parece, nulo. Existe uma tendência, em muitos casos não premeditada, para projectar comportamentos humanos na sociedade animal, e vice-versa, o que pode, a meu ver, explicar a resistência à utilização de termos directos e de sentido neutro.

A cultura, a política, a tecnologia também inspiram metáforas (1), como (além das precedentes) «progresso», «sucesso», «guerra», «competição», «investimento», «código», «informação», «mensagem», «máquinas egoístas», etc.. Mas os genes não são egoístas, nem altruístas. Para quê então utilizar expressões que só conduzem a confusão? Já chegam os mal-entendidos com certas expressões clássicas. Alfred R. Wallace aconselhou Darwin a utilizar a expressão «sobrevivência dos mais aptos» em vez de «selecção natural», expressão metafórica, que personifica a natureza. Simplesmente, a expressão «sobrevivência dos mais aptos» (devida a Herbert Spencer) e que Darwin passou a usar largamente, foi fonte de enorme confusão, muito maior até do que a que tem provocado a expressão «selecção natural». Modelos matemáticos podem evitar, por vezes, expressões infelizes ou inadequadas na comunicação, mas a sua utilização é limitada, e na base da sua inspiração podem estar diversos comprometimentos. Além disso, o seu emprego faz-se, sobretudo, nas áreas das especializações a que são particularmente aplicáveis.

Metáforas falsas, sem sentido, são frequentes. O dualismo cartesiano da alma e do corpo pode originar o ponto de vista segundo o qual as doenças mentais não são verdadeiras doenças porque a insanidade mental não pode ter origem numa degenerescência ou mau funcionamento do corpo, visto que a doença autêntica só ataca a matéria, o organismo, e não a alma. E então a expressão «doença mental» seria metafórica. É o que pensa Thomas Szasz, professor de psiquiatria na Universidade de Nova lorque (2).

O ideal seria que a comunicação científica em biologia não incluisse expressões metafóricas. Mas se não parece possível deixar de recorrer ao emprego de metáforas e analogismos na comunicação entre especialistas e no próprio trabalho de investigação, haverá que exigir a maior cautela, sobriedade e clareza na sua utilização, para que os equívocos e falsas interpretações não adulterem a objectividade e o significado das interpretações. Karl Popper não me parece ter exagerado quando disse que em muitas obras sobre evolução e sobre história é muitas vezes impossível descobrir onde termina a metáfora e começa a teoria séria.


AS MAIORES PROPORÇÕES

Onde a metaforização atinge grandes proporções e formas particularmente abusivas é, sobretudo, naquela larga zona ciência-ideologia, e nas transposições múltiplas da biologia para as ciências humanas, para as áreas imensas da cultura e da filosofia, ou quando se estabelecem relações entre o homem e os outros animais, particularmente a nível do comportamento social e da estrutura das sociedades. Perigo existe quando o abuso da metáfora induz a darmos significados a fenómenos que, na realidade, eles não têm, ou não está provado que tenham. É, por exemplo, o que acontece, muitas vezes, quando, sem senso crítico, se estabelecem certas homologias e filiações entre o comportamento do animal e do homem, sem avançar a suspeita de podermos estar em presença de analogias. Isto será devido à tendência de projectar na natureza ideias e sentimentos que insensivelmente conduzem depois a crer fazerem parte dela. A uma expressão neutra prefere-se um vocábulo já comprometido noutro contexto, e que se julga ser útil fora dele. Simplesmente o que sucede frequentes vezes é que esse vocábulo deslocado origina falsas interpretações. Um equilíbrio impõe-se, a meu ver, entre a arte de comunicar ideias, e a exigência de objectividade e rigor, evitando-se as ambiguidades e a falsa doutrinação.

A sociobiologia, que parece não poder exprimir-se sem o recurso excessivo à metáfora, vai destilando significações deturpadas, sobretudo quando aborda a esfera do homem (3). Aqui, distanciando-se do rigor investigativo e dos limites da hipótese refutável a que, em regra, obedece nos trabalhos da especialidade, já não se sabe, muitas vezes, se a expressão é metafórica, ou se é esse o seu sentido real. A meu ver, quanto mais a biologia abarca o social e introduz o homem nas suas interpretações, a mais metáforas tem que recorrer, e mais ideológica se torna. Uma formiga é «altruísta» na medida em que a sua desvantagem genética implica vantagem genética para outra formiga. Mas altruísmo (humano) é outra coisa: nele existe sempre uma componente consciente e uma intenção de prestar auxílio a outrem. E não chegamos a nenhum lugar se considerarmos «intenções» e «valores» no animal. Se assim fosse, a moral não seria um problema exclusivamente humano, como é. Por outro lado, nem todo o altruismo humano implica necessariamente sacrifício para o altruísta, nem o egoísmo exige que haja nocividade para o semelhante. Nas analogias que se podem estabelecer entre os comportamentos dos animais, para se manterem vivos, e as formas da conduta humana, subjaz, provavelmente, um grande mistério, mas tal facto não justifica que se aproximem ou identifiquem processos de natureza diferente.


UMA METÁFORA SEM SENTIDO

Metáfora abusiva e, sobretudo, sem sentido porque assenta em bases equívocas ou falsas, é, também, a que estabelece René Thom (4) quando identifica os 3 folhetos embrionários (ectoderme, mesoderme, endoderme) à trindade sujeito ( = endoderme), verbo ( = mesoderme) e objecto ( = ectoderme). Os fundamentos embriológicos são simplistas e demasiado generalizantes, tudo em grandes linhas; e, além do mais, inexactos. Por exemplo, não existe no vertebrado uma estrutura ternária claramente constituída pelos 3 folhetos primordiais indiferenciados, e com potencialidades organogenéticas bem segregadas. As coisas não se passam assim, e são bem mais complicadas do que a visão esquemática do matemático francês exprime. Quando Thom justifica a sua metáfora dizendo que «comporta sentido» porque com ela poderá fazer-se «uma embriologia comparada dos vertebrados e dos insectos, por exemplo», comete várias imprecisões. Anoto apenas uma - a de que «nos insectos não há praticamente endoderme», facto que não é correcto. Daqui resulta que a sua interpretação da imaginada diferença fica sem base.

Reconheço que uma biologia inteiramente expurgada de expressões metafóricas não será talvez possível. Mas será sempre preferível o recurso a expressões neutras ou directas, literais e inequívocas. A metáfora deve ser usada com muita parcimónia, utilizando as suas virtudes, mas evitando os seus defeitos. Em ciência as palavras são instrumentos de clareza, fundamentados na realidade, tentando descrevê-la. A metáfora, que poderia ajudar a isso, fá-lo muitas vezes com desmedida e até transviadamente. Com ela aspira-se a penetrar na essência das coisas para as explicar. Os simbolismos, as alegorias e as personalizações, que são variantes, extensões ou cascatas de metáforas, estabelecem a confusão e a falta de claridade dos conceitos. Prefere-se metaforizar em vez de enveredar pelo sentido real e directo dos fenómenos. A palavra «progresso», por exemplo, é aplicada em biologia evolutiva quase sempre com sentido metaforizado. Traduz uma realidade duvidosa, é palavra deslocada do seu significado real. De facto, a ideia de progresso é, muito provavelmente, antropocêntrica, como pensava J. B. S. Haldane, contrariamente, aliás, à opinião de outros biólogos (como Julian Huxley), mas não à de Charles Darwin.


FRAGILIDADE DAS ANALOGIAS

Professores, conferencistas, popularizadores e escritores de ciência, prestam um péssimo serviço quando utilizam um estilo empolado, com recurso constante a analogias, a figuras de retórica, a comparações abusivas, ocas de sentido, num metaforizar excessivo. Em grandes áreas, como na teoria da evolução, ou em disciplinas como na ecologia, na etologia, na antropologia, na sociobiologia, etc., muitos autores são tentados pelas analogias, pela imagem sem fundamento na realidade, pelas hipóteses baseadas em metáforas, ou por explicações que mais não são do que metáforas. A preocupação essencialista (tipológica) de utilizar a ciência para revelar as essências, a natureza real e secreta das coisas, para as explicar, conduz quase inevitavelmente a interpretações que, parcial ou totalmente, são metáforas ou de natureza metafórica.

Após ter depurado a biologia das interpretações divinas, o darwinismo introduziu o hábito irresistível de fazer a leitura do homem em termos de animal. Este método tem implicado analogias, equivalências e valores que são, muitas vezes, estranhos à objectividade científica. Com a sociobiologia atingiu-se o ponto mais alto deste movimento, e o abuso da metáfora constitui um dos seus meios mais poderosos de penetrar na cultura e no ensino, e de corromper uma e outro. «Metaforizar bem é descobrir o que é semelhante», dizia Aristóteles (cit. P. Ricoeur). Será. A verdade, porém, é que o estabelecimento de aproximações e correspondências entre o comportamento animal e o comportamento humano tem conduzido (e continua a conduzir) a muito equívoco e a muito erro. E as provas estão feitas quanto à extrema debilidade dos juízos baseados em simples analogias, tão ao gosto da ideologia científica e dos seus mitos. Impõe-se, por isso, o saneamento semântico de vastos sectores da biologia.


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(1) As estruturas científicas reflectem as relações económicas e a ideologia dominante. A célula é comparada a uma fábrica com suas linhas de montagem, matérias primas, produção e distribuição de produtos. A máquina inspira há 4 séculos a visão da natureza, e toda a biologia se desenvolveu penetrada desse mito.

(2) Cit. O. STENT (1978) - «Paradoxes of Progress». Freeman. V., também, in Nature, 242: 305-307 (1973): SZASZ, Th. - «Mental Illness as a Metaphor».

(3) V. SACARRÃO, G.. F. (1982) - «A Biologia do Egoísmo». Col. Universitária. Publ. Europa-América. Lisboa.

(4) «Parábolas e Catástrofes», Publicações D. Quixote, 1985.