O CASO LYSENKO Trofim Denisovich Lysenko nasceu em 1898 e faleceu em 20 de Novembro de 1976. A história bizarra deste homem constitui um dos capítulos mais estranhos da história recente da biologia. Foi o ditador da biologia nos anos 30 e 40, sobretudo durante o regime de Estaline, que o apoiou, mas a sua influência continuou após a morte deste, em 1953, com o amparo e impulso recebidos de Nikita Khruchtchev. A sua estrela empalideceu, porém, quando este político foi afastado, em 1964, tendo sido destituído dos cargos administrativos que ocupava. Lysenko ganhou, de começo, prestígio ao defender o método da vernalização, que consiste em expor plantas ou sementes a condições artificiais análogas às suportadas no Inverno, nomeadamente a temperaturas baixas, de modo a tornar mais curta a fase que antecede a floração ou a germinação. O processo é utilizado especialmente em raças de Inverno de trigo, com arroz, etc.. Em climas de Invernos longos e rigorosos, a vernalização revela-se particularmente útil. Sementeiras normalmente feitas no Outono podem então ser feitas na Primavera, se as sementes forem submetidas a condições de frio artificial. A técnica de Lysenko consistia na imersão da semente em água que depois era gelada, mas o método já era conhecido e praticado desde há muito tempo noutros países. Com a descoberta de novas raças de trigo, a prática foi abandonada nos Estados Unidos da América do Norte (Zirkle). Lysenko afirmou que com a vernalização podia modificar a hereditariedade e obter novas raças de trigo, o que não foi de modo nenhum provado. E também de, com a mesma técnica, conseguir melhores colheitas de cereais, facto que igualmente não foi alcançado. Mas os políticos apoiaram Lysenko, em grande parte, talvez, porque este proclamava que obtivera variedades novas de trigo por vernalização e, também, por afirmar ter modificado caracteres das plantas por alteração das condições de cultura, em especial com a técnica de enxertia. Uma ideia fervorosamente defendida por Lysenko (que a foi buscar a Mitchurine) é a de que os caracteres hereditários são transmitidos por meio de «sucos» ou «humores» e que as transformações operadas se mantêm perfeitamente estáveis nas gerações sucessivas. Este facto seria verdadeiro não só para as plantas como para os animais e estaria comprovado nas plantas no caso dos híbridos de enxerto, também designados híbridos vegetativos. Uma espécie de planta (enxerto) é enxertada noutra (cavalo), há reunião de tecidos das duas formas, há troca de propriedades, e uma outra forma surgiria, estabilizada e com propriedades novas. A criação de híbridos de enxerto já tinha há muito sido praticada, mas foi abandonada como tentativa de criar espécies ou variedades novas. Os híbridos obtidos por Lysenko em tomates, por este processo, não seriam autênticos híbridos. Estes e outros casos obtidos nos animais cabem no quadro geral dos fenómenos conhecidos pelo nome de quimeras e mosaicos, que de modo nenhum impugnam a genética nem os factos conhecidos sobre a transmissão dos caracteres hereditários como pretendia a escola de Mitchurine-Lysenko. Apesar dos malogros na prática, Lysenko elaborou a sua teoria biológica e conseguiu desacreditar na URSS a teoria cromossómica da hereditariedade e lançar o anátema sobre a genética mendeliana. As investigações em genética foram suspensas, investigadores foram destituídos das suas posições, cessou o ensino da genética entre 1948 e 1964 e novos textos foram escritos e publicados, de acordo com a nova biologia mitchurinista-lysenkista. A aversão à genética começara muito mais cedo, nos anos 30, em particular contra as investigações em genética humana, acusada de justificar ou conduzir ao racismo, ou contra a aplicação dos princípios da genética à sociedade. O resultado foi que já em 1936 os estudos sobre genética humana foram suspensos. O cientista N. I. Vavilov (1887-1943), homem com grande reputação internacional, sob a direcção do qual a investigação genética fez grandes progressos na URSS, foi preso em 1940 e exilado para a Sibéria, e anos depois morreu na prisão. A sua reabilitação foi feita mais tarde, em meados dos anos 50, quando esmoreceu a credibilidade em Lysenko, sobretudo por ele ser considerado responsável por as quintas colectivas não cultivarem milho híbrido, contra o qual ele tinha tomado forte posição pessoal. Lysenko não começou isolado a sua campanha a favor de uma biologia extravagante. Era o cabeça de fila de um grupo, mas foi fortemente apoiado por I. I. Prezent, um teórico do materialismo dialéctico e seu intérprete filosófico, que criticava certos aspectos da biologia. Ele e Lysenko criticaram e ridicularizaram a genética mendeliana e outros aspectos da biologia, tendo dessa colaboração nascido um livro onde se expunham já os fundamentos da teoria de Lysenko sobre o desenvolvimento das plantas. Biologia anacrónica e ideologia partidária Trofim Lysenko, agrónomo russo, era partidário convicto da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos, e a partir desta crença absoluta, que foi beber ao seu mestre Mitchurine, arboricultor famoso, proclamou o repúdio dos cromossomas e dos genes como suportes da hereditariedade, negou o mendelismo, as mutações do material hereditário e o seu papel para a evolução. Decretou, em suma, a falsidade da genética. A questão é, porém, mais dramática e teve consequências de enorme alcance. O lysenkismo foi um movimento de grande importância, não apenas por traduzir uma directa e lamentável intromissão do poder e da ideologia na ciência, com todos os erros e violências consequentes, mas sobretudo porque, apoiado firmemente no poder político, cresceu e perseguiu a comunidade científica. E, assim, o que era falso passou a ser verdadeiro por simples decisão do poder político partidário. Era necessário que os cientistas se curvassem ao poder político, que a ideologia esmagasse a ciência e a pusesse a fazer milagres na economia (na agricultura, sobretudo) conforme à ortodoxia. Sem o absoluto suporte político e ditatorial conferido a Lysenko pelo Partido Comunista Soviético o movimento resultaria minguado e provavelmente não passaria de trocas de pontos de vista sem futuro em círculos da especialidade. Era mais um caso de pseudociência, interessante quando muito para figurar nos arquivos da história, mas sem interesse para o cidadão não iniciado, sem intervir nas crenças e políticas, e sobretudo sem que dele resultasse a repressão científica e policial que foi exercida sem tréguas durante anos sobre a biologia soviética. Mas como este sector científico passou a ser dirigido pela batuta lysenkista, estalou uma viva oposição em relação à genética e à biologia evolutiva ocidental. Seguiram-se protestos violentos da parte da comunidade científica internacional, representada por alguns dos nomes mais prestigiosos da biologia das décadas de 30 e 40. Esta grande heresia, que nasceu por volta de 1935 e que aparentemente se extinguiu em 1964, foi um complexo movimento ligado à ideologia partidária e, consoante tem sido afirmado, às condições precárias do desenvolvimento da agricultura soviética e ao desejo justificado de terminar com elas, modernizando e intensificando a produção neste sector fundamental da economia. Não estão, porém, bem esclarecidas todas as causas e aspectos do fenómeno. Sem dúvida que na sua base existem experiências e ideias, segundo as quais os caracteres adquiridos passam para os descendentes, reavivando-se, portanto, o velho dogma. Lysenko já foi considerado o Lamarck do século XX, o que, quanto a mim, é uma comparação mais do que abusiva, pois o primeiro não tinha o valor nem a originalidade do segundo, além de que este não arvorou a sua teoria em panaceia política, nem com ela pensou jamais em revolucionar a agricultura ou perseguir os colegas. Conhecem-se diversas grandes mistificações científicas, mas o caso Lysenko é, provavelmente, o que ganhou maiores proporções e o que se traduziu por maior fanatismo. É certo que o nazismo inventou uma antropologia para uso próprio e serviu-se fraudulentamente da ciência para instaurar uma falsa biologia racial, e à sua sombra praticou genocídios e horrores de difícil paralelo na história. Mas foi uma mistificação colectiva, toda ela emanando afinal da própria ideologia fascista. O caso Lysenko é muito diferente. Tratava-se de um homem ambicioso e sectário, de origem camponesa, com uma cultura científica pouco profunda, um tanto místico, mas possuidor de excelente treino como agrónomo prático, e que um certo sucesso na profissão e um conjunto de circunstâncias particulares içaram até à área do poder. E não deve esquecer-se que quase toda a fase vitoriosa do lysenkismo foi abarcada pelos anos da guerra, durante os quais as preocupações dos governantes estavam dirigidas noutras direcções mais importantes do que as querelas científicas sobre a validade ou não validade da genética para a melhoria da agricultura. E mesmo os anos subsequentes ao fim da conflagração foram absorvidos pelo esforço gigantesco da reconstrução e sarar de feridas de toda uma nação devastada pela demência do imperialismo alemão. O lisenkismo caracterizou-se fundamentalmente pela negação da genética e de todas as suas consequências para o darwinismo. Sem dúvida que Lysenko se dizia darwinista, mas apenas na medida em que as variações dos organismos fossem devidas à acção do meio e transmitidas à descendência. Quer dizer: para ele, todo o darwinismo que recusasse a hereditariedade dos caracteres adquiridos era falso, era idealista e reaccionário. É por isso que o lysenkismo pode também ser considerado como um movimento contra o neodarwinismo - contra o nascimento da síntese moderna, que nessa crucial década de 30 ensaiava os primeiros e seguros passos. Aliás, Darwin nunca concedeu importância fundamental à hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos e se o lysenkismo, que adoptou as teorias de Mitchurine, como se verá mais adiante, se considera «darwinista», é uma preferência apenas táctica, de pura conveniência para se integrar numa doutrina materialista respeitada e universalmente aceite. Mas é um darwinismo fortemente abastardado (...). A trindade a abater Para Lysenko, a trindade Mendel-Weissmann-Morgan era o grande inimigo a abater, cujo idealismo e mentiras era indispensável denunciar. Mendel descobriu as leis que presidem à transmissão dos factores hereditários, ou seja, dos cromossomas e dos genes neles localizados. Weissmann mostrou a existência de uma independência entre a linha germinal (que produz as células reprodutoras) e o resto do organismo (soma) , de tal modo que as modificações neste último não se transmitem às células reprodutoras, nem se fixam nos genes. Esta teoria provocou uma grande clarificação conceptual e foi um dos degraus que conduziram à teoria cromossómica da hereditariedade e à moderna genética. Os exageros do weissmanismo foram devidos a indivíduos que não eram biólogos. A continuidade entre as gerações é assegurada por tecidos embrionários e pelas células germinais deles derivadas. A concepção de uma separação de funções entre as células diferenciadas, que constituem o corpo (soma), e as células germinais (não especializadas) , que constituem o germe, e mantêm potencialidades organizadoras, e das quais provém, portanto, o novo organismo, foi a contribuição fundamental de Weissmann. Reconhecer esta separação (que não é absoluta) entre duas partes que fazem parte do mesmo conjunto, mas têm destinos ontogenéticos diferentes, foi um dos grandes passos que rasgaram o caminho à moderna biologia evolutiva, na medida em que tornou altamente problemática a hereditariedade das modificações adquiridas pelo soma, pois não é este que transmite os factores hereditários à nova geração, e a experiência e a lógica mostram que as configurações e os hábitos adquiridos não são transponíveis do corpo para as células reprodutoras. Compreende-se, assim, que Weissmann tenha vibrado um golpe mortal na hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos. Lysenko e outros advogados desta teoria-crença pretendem, no fundo, voltar à pangenesis, teoria em voga no final do século XIX, que precedeu a teoria cromossómica da hereditariedade, doutrina que já nascera na mente dos antigos gregos, sobretudo em Demócrito, velha, portanto, de dois mil anos. Na essência, essa teoria diz-nos que cada órgão, cada parte do organismo, envia partículas, «moléculas» representativas (ou pangenes) deles, com as suas propriedades e configurações, e que tais partículas convergem todas para as células reprodutoras, nomeadamente para o sémen quando introduzido na fêmea no acto da copulação, como pensava o filósofo grego. Para ele, a intensidade do orgasmo explicava-se pela pronta arremetida e simultânea de todos os pangenes vindos de todos os pontos do corpo para o sémen. Darwin recorreu à teoria da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos e fez reviver a velha teoria de Demócrito, sob a forma da existência de gémulas, como sendo as partículas representativas de cada órgão e produzidas neles exactamente como os velhos pangenes. Tais partículas entrariam nos elementos reprodutores transportando as características dos órgãos. Ora isto era uma tentativa de explicar a hereditariedade dos caracteres adquiridos, as variações e as semelhanças relativamente aos progenitores, a razão de os filhos se parecerem com os pais e serem diferentes entre si, visto que os caracteres do corpo e as suas modificações por acção directa do meio, do uso e do desuso eram captados e transportados nessas misteriosas gémulas, as quais, introduzindo-se nas células germinais (espermatozóides e óvulos), transmitiam à descendência esses caracteres. Esta concepção da hereditariedade, em que se misturam, em todas as proporções, dois plasmas contendo as gémulas de cada progenitor, dominou o pensamento biológico até final do século XIX. Diga-se de passagem que a teoria dos pangenes, renovada por Darwin, é a sua contribuição medíocre, teoria para a qual não havia qualquer suporte sério. É de crer que a ideia de hereditariedade do adquirido se impusesse de tal modo aos espíritos que raros eram os que concebiam outro modo de hereditariedade. E Darwin vergou-se a essa crença comum e decidiu dar-lhe uma aparência científica. Ora o que é o lysenkismo senão a exaltação sectária da bolorenta teoria dos pangenes, arvorada em dogma sagrado? Repare-se, por exemplo, no trecho do seu relatório quando ele afirma que a transmissão hereditária se faz por "inclusão das substâncias da parte modificada do corpo" nas células germinais do organismo (v., mais adiante, a p. 316, onde se transcreve a referida passagem de Lysenko, que o autor teve o cuidado de sublinhar inteiramente para assim evidenciar a enorme importância que lhe atribuiu) . Apesar de Darwin ter admitido a hereditariedade dos caracteres adquiridos, a Origem não contém fantasias pangenéticas. Mas isto é, por assim dizer, secundário, porque a teoria revolucionária é a que estabelece o conceito científico de selecção natural, com a noção implícita e fundamentalíssima da existência nas populações de organismos de variações hereditárias acidentais, sem relação necessária com as necessidades do organismo nem com as condições do ambiente, variações que o ambiente selecciona ou elimina, tudo aspectos que desagradam aos lamarckistas ortodoxos ou desviados, e às ideologias que se nutrem do mesmo princípio dogmático. Será talvez por isso que Lysenko acusa Darwin de ter cometido uma série de grandes erros, nomeadamente que a selecção seja um processo a traduzir uma relação concorrencial e competitiva dos organismos pela sobrevivência, de que teria recebido a inspiração em Malthus. Mas Darwin adoptou a hereditariedade dos caracteres adquiridos, reformulou a teoria dos pangenes, que é uma tentativa de fundamentar cientificamente esse conceito milenário. E fê-lo no seu livro Variation of Animais and Plants under Domestication (capítulo sobre «Pangenesis»), obra que Lysenko certamente não devia desconhecer, homem devotado como era à prática agrícola. O erro fundamental de Darwin seria o ter-se o naturalista inglês inspirado em Malthus para elaborar a sua teoria da selecção natural e admitir como um facto a competição na natureza viva. Mas está demonstrado que as coisas não são assim tão simples e esquemáticas. A dívida de Darwin a Malthus tem aspectos diferentes dos que correntemente lhe são atribuídos Por outro lado, não será legítimo perguntar: como se pode aceitar o darwinismo e o conceito de selecção natural, como faz Lysenko, sem, implicitamente, admitir fenómenos competitivos naturais? Que é o darwinismo sem o conceito de selecção de variantes na luta pela existência? Afigura-se-me que o que os mitchurinistas e lysenkistas preferiam era um darwinismo sem Darwin, colocando no lugar deste um Lamarck. Chego assim à conclusão de que a não aceitação absoluta, incondicional, da hereditariedade dos caracteres adquiridos é que teria sido, no ponto de vista de Lysenko, a grande falta de Darwin. O seu grande pecado teria consistido em não considerar a origem das espécies como um fenómeno resultante da acção directa das condições do ambiente, cujos efeitos logo passariam à descendência. Mas também aqui não devemos esquematizar. A crítica ao darwinismo científico tem fundas razões ideológicas. No tempo de Darwin houve quem realizasse experiências para testar a sua teoria dos pangenes ou gémulas. Um dos trabalhos nesse sentido foi realizado por seu primo, Francis Galton (1871), que tão celebrado havia de ser como homem de ciência. Num outro artigo publicado no mesmo ano (intitulado «Pangenesis»), Darwin defende a sua teoria. Galton provara, por meio de experiências de intertransfusão entre diferentes variedades de coelho, que não podia haver as tais «gémulas» no sangue. Darwin responde no artigo referido afirmando que nunca dissera que essas partículas existiam no sangue, mas pensa que elas impregnam todos os tecidos do organismo e difundem através deles, de célula para célula, independentemente dos vasos sanguíneos. Galton conclui que a teoria da pangénese é falsa, mas a isto Darwin responde que a conclusão é um pouco precipitada «is a little hasty»). É curiosa a passagem de Darwin, no mesmo artigo, quando diz que, se Galton tivesse provado a existência de elementos reprodutores no sangue dos animais superiores, que fossem simplesmente separados, ou reunidos pelas glândulas reprodutoras, certamente teria feito uma descoberta fisiológica da maior importância. Continuava, portanto, aferrado à ideia das gémulas. Mas reconhece que a teoria apresenta diversos pontos vulneráveis e que, portanto, a vida da hipótese dos pangenes continua ameaçada, mas que não é desta vez, afirma, que lhe dão o golpe de misericórdia. Darwin não é, portanto, dogmático, admite poder estar errado, mas está firme nas suas ideias, neste caso com bases bem frágeis, o que não era seu hábito. Note-se também a diferença entre o espírito de Darwin, aberto à dúvida e reconhecendo a fraqueza da sua teoria das «gémulas» por apresentar «so many vulnerable points», e a teimosia sectária de Lysenko e seus parceiros, que retiravam o critério de verdadeiro ou de falso dos dogmas ideológicos e políticos, e não dos factos que constrangem. (...) Sessões da Academia A Academia Lenine das Ciências Agrárias foi o teatro onde se desenvolveram alguns aspectos deste grande drama e conjuração. Na sessão de Dezembro de 1936, reunida em Moscovo, Lysenko, Prezent e associados dirigiram os seus primeiros ataques em forma contra Vavilov (na ocasião vice-presidente da Academia), contra as teorias e práticas da genética. Seguiu-se a eliminação de Vavilov; e a partir daí Lysenko e os seus parceiros obtiveram o completo domínio da biologia na União Soviética, quer no domínio da investigação, quer no sector do ensino. O Congresso Internacional de Genética a realizar em Moscovo em 1937 foi anulado pelas autoridades soviéticas e mais tarde transposto para Edimburgo (1939), congresso para o qual Vavilov fora eleito presidente. O seu renome como cientista era devido, em grande parte, aos seus trabalhos sobre a origem, distribuição e diversidade das plantas cultivadas em várias partes do mundo. O segundo acto ocorreu na reunião da Academia em Outubro de 1939. Lysenko atacou pessoalmente Vavilov e outros cientistas, que se defenderam como puderam, numa sessão que mais se assemelhou a um julgamento do que a uma reunião cientifica. Após esta trágica sessão, Lysenko e o seu grupo lograram poder absoluto sobre a biologia em todo o país. No ano seguinte consumou-se a eliminação de Vavilov. O terceiro acto veio com a reunião da mesma Academia em 1948, onde Lysenko (que presidiu), Prezent e outros fizeram uma acusação final e definitiva aos mendelianos sobreviventes e eliminaram as últimas resistências. Lysenko apresentou o seu famoso relatório inaugural sobre o estado da ciência biológica, com as suas ideias e teorias biológicas à mistura. O relatório inaugural foi aprovado no meio de aplausos entusiásticos, com os académicos de pé, com discursos inflamados a apoiar Lysenko, alguns a discordarem dele, e o muito mais que é conhecido e está publicado. Houve posteriormente retractações e confissões de culpa, expressas em cartas dirigidas ao Partido e a Estaline, com promessas de ajudar ao desenvolvimento do mitchurinismo, etc. Foi tudo publicado na Pravda, e as comunicações e textos oficiais da reunião foram reunidos e publicados em russo, inglês e francês. Nesse relatório explana os seus ataques, a sua metafisica e as suas ideias científicas, numa longa diatribe que nos revela que os factos pouco contavam em face da ideologia e que o materialismo dialéctico nas suas mãos ficava suficientemente elástico para lá caberem os seus argumentos, as suas paixões e a sua confusa biologia. Passo a transcrever algumas passagens onde é evidente que a hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos é proclamada uma verdade indiscutível, sem que para isso sejam apresentados quaisquer argumentos ou factos científicos. A teoria materialista da evolução dos organismos vivos implica a necessidade de reconhecer a transmissão hereditária das características individuais adquiridas por um organismo sob condições definidas da sua existência, teoria que é impensável se não se admite a hereditariedade dos caracteres adquiridos. Weissmann, contudo, refutou esta posição materialista. Na sua obra Conferências sobre a Teoria da Evolução, Weissmann declara que «não só não existem provas de uma tal forma de hereditariedade, como ela é inconcebível do ponto de vista teórico». Baseando-se em declarações precedentes do mesmo teor, Weissmann declara que «assim foi declarada guerra ao princípio de Lamarck sobre os efeitos modificadores directos do uso e do desuso, e que tal facto marcou realmente o começo da luta que ainda hoje prossegue entre os neolamarckistas e os neodarwinistas, tal como foram designados pelas partes adversas». (P. 9.) E mais adiante: Primeiramente, as posições bem conhecidas das condições externas na formação do organismo vivo e a hereditariedade dos caracteres adquiridos, em oposição à meta física do neodarwinismo (ou weissmanismo), não são de modo nenhum erradas. Pelo contrário, são inteiramente verdadeiras e científicas. (P. 12.) E logo a seguir: Nós, os representantes da tendência soviética mitchuriniana, afirmamos que a hereditariedade dos caracteres adquiridos pelas plantas e pelos animais no decurso do seu desenvolvimento é possível e necessária. (P. 13.) E ainda: As modificações da hereditariedade resultam, em regra, de o desenvolvimento do organismo se fazer sob condições externas que, em certa medida ou outra, não correspondem às exigências naturais de dada forma orgânica. Modificações nas condições de vida provocam modificações no tipo de desenvolvimento dos organismos vegetais. O tipo de desenvolvimento alterado é, assim, a causa fundamental da modificação da hereditariedade. Todos os organismos que não podem modificar-se de acordo com as novas condições de vida não conseguem sobreviver e não deixam descendência. (Pp. 27 e 28.) E logo abaixo: O grau de transmissão hereditária das alterações depende do grau de inclusão das substâncias da parte modificada do corpo em toda a cadeia do processo que conduz à formação das células reprodutoras do organismo, sexuais ou vegetativas. (Pp. 28-29.) E também: A hereditariedade é o efeito da concentração da acção das condições do ambiente externo assimiladas pelo organismo numa série de gerações precedentes. (P. 31.) Mais adiante se verá que, segundo o mitchurinismo-lysenkismo, a hereditariedade de um organismo pode experimentalmente ser «abalada», ficando num estado de instabilidade que depois se estabilizará de acordo com as novas condições de meio, dando um organismo de outra espécie. E Com tais «sacudidelas» ou «abalos» o homem está em condições de rapidamente mudar umas espécies noutras espécies. Lysenko, nas suas conclusões, lidas no último dia, começa desta forma verdadeiramente extraordinária, que não necessita de comentários: Camaradas, antes de passar às conclusões, julgo ser meu dever fazer a declaração seguinte. Num dos papéis que me passaram perguntam-me qual é a apreciação do comité central do Partido acerca do meu relatório. Respondo: o comité central examinou o meu relatório e aprovou-o. Quero agora apresentar algumas conclusões sobre a presente sessão. Lysenko atingiu nesta memorável reunião de Agosto de 1948 o cume da sua influência e poder. Recebeu várias e altas condecorações (repetidas Ordens de Lenine e Prémios Estaline, Herói do Trabalho Socialista, etc. ) , foi eleito para a Academia das Ciências da URSS e também para a da Ucrânia, e para presidente da Academia Lenine das Ciências Agrárias de 1938 a 1956 e 1961 a 1962. Era um verdadeiro ídolo, um semideus, cuja palavra era sagrada, cujas ideias e proclamações, por muito bizarras ou incríveis que fossem, eram indiscutíveis e inalteráveis. Do ponto de vista profissional, Lysenko começou como especialista do Departamento de Fisiologia do Instituto de Selecção e Genética de Odessa (1929 a 1934) , mas ascendeu rapidamente ao lugar de director da mesma instituição (1935 a 1938) ; e finalmente, de 1940 a 1965, foi director do Instituto de Genética da Academia das Ciências da URSS.
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