BIOLOGIA E IDEOLOGIA Hoje não parece possível debater qualquer problema relativo ao homem sem o considerar à luz da ciência, em particular da biologia, que ocupa aí uma posição verdadeiramente central. Mas a interpretação, socorrida pelo conhecimento objectivo, terá de não perder de vista a profunda originalidade humana. Absorvidos em demonstrar que o homem é um animal, tem-se estado muitas vezes desatentos ao facto de ele ser um animal sem paralelo entre os outros seres. Não é tanto o que nos aproxima do animal o que devemos procurar, mas principalmente conhecer aquilo em que nos afastamos dele. Em geral, o que se tem feito, sobretudo desde os tempos heróicos do começo do darwinismo, é acumular testemunhos da animalidade do homem, quando hoje o que parece de facto importante é evidenciarmos a sua originalidade biológica, a sua humanidade. A tendência tem sido, quase constantemente, aplicar ao homem factos e teorias zoológicas que se têm revelado inadequadas quando utilizadas para o explicar, ou, pelo menos, não clarificando, de modo nenhum, a extrema complexidade dos fenómenos e problemas que o estudo da nossa espécie revela. Importantes descobertas realizadas no campo da etologia e da ecologia das sociedades animais têm conduzido certos autores à tentação de fazer a sua transposição pura e simples para as sociedades humanas, na presunção, em grande parte falsa, de que o comportamento social humano obedece aos mesmos determinismos biológicos que actuam nos animais sujeitos às observações e experiências. Terá, por exemplo, fundamento biológico a ideia de que o homem é um símio-assassino, um animal diabolicamente possuído por instintos agressivos, inclinado irresistivelmente por sua natureza à violência e à destruição? E o que deverá entender-se por natureza humana? Não há respostas simples e directas para tais interrogações. Talvez seja útil insistir neste ponto. Um dos sinais mais curiosos de certas ideologias e modas intelectuais é a sua pretensão a crédito científico, muitas vezes mesmo a teoria. Para isso amparam-se a uma disciplina da ciência, sustentam-se dela, mas recusam-se à demonstração científica, à busca, à prova do erro. Fabricam aparências de ciência, aproveitam as suas nomenclaturas, mimam as suas exterioridades. Assim acontece com diversos sistemas e ideologias que se nutrem da biologia sem se submeterem às normas da verificação e da crítica científicas. Quantas ideologias nestas condições não existem, com ambições de ampla explicação «científica», a nível da raça, da psicologia, da sociologia, da história, da moral, da condição humana, etc.. O mesmo acontece com disciplinas da biologia, que se metamorfosearam em modas intelectuais ou em ideologias de massa, como tem sido o caso da ecologia e sobretudo da sociobiologia (forma moderna e viva do darwinismo social) em tantas das suas levianas transposições para a esfera humana. Tendência que se estende a outros ramos da biologia, numa sorte de «interdisciplinaridade» ideológica no seio desta ciência. A ponto de a biologia como fonte de mais saber de conhecimento objectivo se confundir com uma «biologia» social e política, que é uma falsificação de ciência. O que Pierre Achard e co-autores (1977) chamaram a «biologização acelerada das questões sociais e políticas». Importa, em suma, distinguir a biologia como sistema de conceitos estruturados nos factos daquela que é utilizada como sistema que se sobrepõe aos factos para servir de garantia a filosofias ou ideologias. De resto, não há ciência neutral. A sua pureza é relativa. O facto de os cientistas descobrirem tantas coisas verdadeiras e importantes não significa que tudo o que afirmam em nome da ciência o seja, que não veiculem falsidades, preconceitos, ideologias. Ciência livre de influências políticas, de orientações ideológicas, autenticamente objectiva, é coisa que não existe. Se confundir ciência e ideologia é sempre um mal, a verdade é que a primeira não consegue libertar-se inteiramente da influência da segunda. As convicções sem prova, típicas das ideologias, têm uma força enorme, e são elas muitas vezes que guiam a pesquisa e a desviam para caminhos estéreis ou viciados, ou barram o caminho à crítica e ao livre exame. A ciência é orientada em regra para objectivos de acordo com os interesses, as ideologias, as culturas das classes que detêm o poder. E que o justifiquem. O cientista utiliza os resultados da sua própria ciência em harmonia, muitas vezes, com a sua própria ideologia, ou a da classe a que pertence. E então há circunstâncias em que chega a deformar as conclusões científicas (suas ou de outrem) com consciência, ou não, dessa alteração. Num universo social totalitário, ou numa civilização fortemente influenciada pela religião, a ciência toma feições e desenvolvimentos diferentes daqueles que surgem em países que oferecem largas possibilidades à discussão livre, à investigação fundamental e à aventura das ideias. A ciência, de facto, é sempre relativa, raramente ou nunca é neutral. O poder político domina-a, infiltra-se nela, é constantemente inspirada pela ideologia, comandada por ela. A inseparabilidade da ciência em relação à política é particularmente evidente quando a pesquisa ou a interpretação à luz da ciência respeita ao homem. E a ideologia burguesa marcou profundamente a ciência moderna, quer lhe tenha servido de veículo, quer de suporte. Os cientistas têm as suas ideologias, as suas crenças, políticas e religiosas, que amiúde decidem das suas opções por este ou aquele ponto de vista, determinam em parte o sentido das hipóteses que formulam e, sobretudo, estão, em grande número de casos, na origem das resistências que opõem às novas teorias e descobertas científicas (v. Barber, 1961). Na realidade, o homem de ciência dificilmente escapa à influência dos valores da sociedade em que se insere e foi educado e à ideologia da classe social a que pertence. Perante os mesmos factos, os cientistas manifestam opiniões opostas e extraem conclusões absolutamente antagónicas das mesmas experiências e observações. Numerosos biólogos opuseram-se com vigor à teoria da evolução, em particular ao darwinismo, quer na sua forma tradicional, quer moderna. Houve (e há) grandes resistências à teoria da selecção natural. A teoria cromossómica da hereditariedade, a teoria do gene, foram igualmente alvo de fortes ataques e rejeições. Ainda nos anos 20 e 30 havia professores de Biologia que manifestavam fortes dúvidas sobre a realidade dos cromossomas, a sua integridade, o seu papel de veículos dos factores hereditários, etc.. Durante muitos anos, a teoria da hereditariedade dos caracteres adquiridos foi admitida mais por razões de crença do que por argumentos científicos. Este fenómeno de oposição de fundo ideológico continua vivo. As filosofias e políticas a que os cientistas aderem continuam a influenciar as conclusões dos seus trabalhos, as rejeições ou simpatias que exprimem pelas novas ideias, e a determinar múltiplas contradições que nascem nos seus espíritos. A ciência não é separável da ideologia. Teorias biológicas, por exemplo, sobre a origem da vida, sobre as causas das adaptações, os factores da evolução, o papel da hereditariedade ou do ambiente, a origem do homem, etc., recebem resistências ou acerbas críticas que muitas vezes nada têm a ver com a objectividade científica, mas antes com as ideologias de cada opositor. Grandes nomes da ciência têm exprimido fortes objecções ou mesmo rejeições absolutas de factos e de teorias científicas meramente (ou predominantemente) por razões ideológicas. Em cada época existem certas áreas da ciência que predominam, que atrofiam outras, ou exercem forte influência sobre os seus modelos explicativos. Muitas vezes é uma questão de moda, mas noutros casos a supremacia resulta da sua maior importância social, do seu significado industrial, económico e financeiro (exemplo da biologia molecular, da engenharia genética, da ecologia), do seu suporte à ideologia do poder, etc.. De modo que uma área científica dominante tem tendência a definir os modelos, as hipóteses e os conceitos de outras áreas ou disciplinas. Actualmente, na biologia prepondera a biologia molecular, ou seja, a "biologia do invisível"; e a biologia evolutiva, que é sobretudo a biologia da mudança, da adaptação e da diversidade das estruturas e fenómenos acessíveis à actividade normal dos sentidos, é dominada pelos conceitos, factos e pressupostos que respeitam à primeira, e valem para ela. Ernst Mayr (1982) tem razão ao chamar a atenção para o grande perigo que existe quando explicações válidas no âmbito de certas ciências são aplicadas a situações ou problemas para os quais são completamente inadequadas. Isto tem a ver, também, com o problema do valor das explicações baseadas em analogias, que, se em certos casos se revelam eficazes, por via de regra conduzem a falsas e grosseiras interpretações. Não oferece lugar para dúvidas que o espírito geral de uma época (o Zeitgeist), assim como as filosofias predominantes, as estruturas socioeconómicas existentes, as ideologias de classe, os interesses dos grandes grupos económicos, etc., têm influência sobre o desenvolvimento da ciência, sobre as suas orientações, as áreas que dominam, as teorias que se estabelecem. E, todavia, talvez que a generalidade dos cientistas, nomeadamente dos biólogos, não atribua significativa importância a esse facto. Negam que o progresso da biologia esteja dependente de modo expressivo da acção de factores sociais. A biologia, e a ciência em geral, seria algo que pairaria acima do jogo das forças que regem a sociedade, mantendo, assim, a sua pureza objectiva como instrumento de procura e encontro da verdade, impermeável às ideologias conspurcadoras. Seria o produto da pura actividade do espírito, estranha às exterioridades. A continuação do ideal grego. Os factos mostram, contudo, à saciedade, exactamente o inverso. Se é amplamente reconhecido que a biologia não trabalha num vazio social, como aliás o admitem mesmo os que proclamam a sua imaculadidade e independência, e se está provado que as crenças e filosofias de cada cientista influenciam vincadamente as suas opções, hipóteses e conclusões, forçoso será também reconhecer que a ideologia de um grupo social ou de uma época não pode deixar de marcar profundamente a ciência, em especial a escolha dos problemas, as teorias elaboradas, as conclusões extraídas das observações. Mas não devemos cair em excessos. Nem a ciência progride como um universo fechado sobre si mesmo, apenas movido por factores pertencentes ao seu próprio âmbito, nem as forças sociais são os únicos agentes no processo. Nem devemos negligenciar nem agigantar outras causas, entre as quais se situam, por exemplo, as posições individuais dos cientistas, as suas ideologias, culturas e psicologias, a que aludi há pouco. Charles Darwin constitui um exemplo significativo. Sem dúvida que na génese da sua teoria entraram múltiplos factores e não apenas a sua posição de classe. A viagem do Beagle, o que durante ela observou em terras exóticas, as meditações suscitadas, os autores e leituras que escolheu, a maneira como tudo isto se reflectiu no seu espírito e o modo original (e genial) como este reagiu e construiu novas e fecundas ideias, teve uma importância decerto considerável na elaboração da teoria darwiniana, não sendo legítimo reduzir a sua obra a uma simples aplicação à natureza viva do laissez-faire, do individualismo económico característico do sistema capitalista, ainda que não possa negar-se a sua importante quota-parte para o desenvolvimento do pensamento darwiniano e como reflexo e justificação de uma sociedade e dos valores de uma classe em plena ascensão. As considerações precedentes, particularmente no que respeita às influências das ideologias dos cientistas como entraves ao progresso científico, ou como fontes de «má» ciência, não devem criar a ideia falsa de que eles são pessoas sem «espírito aberto». Pelo contrário, creio que entre os cientistas esta qualidade continua a ser um valor incontestável e frequente. As resistências às inovações, as oposições e influências ideológicas ou religiosas, são obstáculos importantes, assim como o são os defeitos das especializações excessivas, ou o peso da autoridade, tantas vezes nefasto e devastador, imposto pelos cientistas que ocupam os escalões superiores das hierarquias universitárias ou dos grandes centros de pesquisa. Creio que no âmbito das ciências exactas e experimentais a aceitação é maior do que a resistência e que tanto ela como a objectividade são maiores do que noutras áreas, por exemplo, nas áreas das ciências sociais e humanas. O desenvolvimento da ciência moderna aí está para o demonstrar. Mas torna-se indispensável alargar o espírito antidogmático e incrementar a vigilância e actuação crítica. Os esforços deverão convergir para reduzir ao máximo a resistência que ainda existe. É um facto que a «abertura de espírito» e o livre exame continuam a ser normas dominantes em ciência, e a crítica livre e a competição entre ideias permitem pôr à prova conceitos e teorias e a submeter hipóteses refutáveis à prova de erro. O ideal seria tomar a natureza física e biológica como ela é, ou a natureza social e individual do homem e o seu comportamento em sociedade tal como são, sem nessas naturezas projectar as nossas políticas, os nossos desejos, os nossos valores. É o que pretendem Barber e tantos outros autores, sobretudo aqueles, que formam provavelmente a maioria, que acreditam e proclamam a neutralidade estreme da ciência. É a utopia da objectividade absoluta, que é coisa que não existe, ao que me parece. Em áreas como as das ciências sociais e humanas, as teorias não passam muitas vezes de pontos de vista consolidados por uma selecção de elementos da realidade que lhe são aparentemente favoráveis, e na escolha de factos ou teorias biológicas convenientes para caucionar a ideologia subjacente ou em vista, com isso se constituindo aquilo a que poderá chamar-se uma «biologia justificatória». As incontestáveis virtudes da ciência, produto supremo do espírito humano e sua glória, não devem fazer-nos esquecer as suas fragilidades, as suas utilizações, a fazerem dela instrumento de poder e em acordo com o poder político. As universidades e outros grandes meios científicos criam uma aristocracia do saber e uma ideologia de dominação que, ao mesmo tempo que suportam o poder político e as suas instituições, se distanciam dele para melhor garantirem as suas aparências de pureza e de objectividade. Este facto acontece em todos os regimes, mas é particularmente nefasto nos regimes totalitários, porque nas democracias pluralistas a existência de poderes e contrapoderes legitimados servem de são correctivo a esse pendor. A ciência faz parte do corpo social, desenvolveu-se nele e não escapa aos nexos, às contradições e aos movimentos produzidos pelas forças sociais. Aliás, a ciência criou a sua própria ideologia, nova religião a que é costume chamar cientismo (o reducionismo é o seu mito fundamental), credo fortemente enraizado em todos os países do mundo, capitalistas ou ditos socialistas, em desenvolvimento ou desenvolvidos. O cientismo é uma ideologia de poder, de certezas, o único conhecimento verdadeiro, que abarca a moral, a filosofia, que tudo invade, num reducionismo absoluto que tudo pretende explicar e dominar. O credo assenta em vários mitos que são outros tantos erros. O cientismo é provavelmente uma das ideologias mais poderosas e perigosas da nossa época, que alimenta toda a ideologia política moderna, burguesa ou marxista vulgar. Constitui um "sólido fundo comum à ideologia capitalista e à ideologia comunista sob a forma em vigor na maior parte dos países chamados socialistas" (Jaubert e Levy-Leblond, 1975). Parte da ideologia do Ocidente, com a sua noção de progresso rectilíneo à custa da ciência e da técnica, tem servido de inspiração ao estudo do reino animal. Os conceitos competitivos e capitalistas forjados pela civilização ocidental têm sido confundidos ou assimilados à natureza ou sancionados por esta. Esta natureza, antropomorfizada à luz de uma visão económico-concorrencial e de progresso sem fim, serve, depois, para explicar o homem ocidental, a sua civilização, os seus valores, a sua condição social. Cultura ocidental, natureza, darwinismo social, moderna teoria genética da evolução, biologia molecular, teoria do código genético, ecologismo, e, finalmente, a sociobiologia são partes de um mesmo todo complexo. Marshall Sahlins (1976), que analisou de perto este problema, afirma, não sem razão, que se «Adam Smith produziu uma versão social de Thomas Hobbes, Charles Darwin deu-nos uma versão naturalizada de Adam Smith; em seguida, William Graham Sumner reinventa Darwin como sociedade e Edward O. Wilson reinventa Sumner como natureza. Desde Darwin, o movimento pendular conceptual acelerou-se. Cada década dá-nos uma noção mais refinada do homem como espécie, e também uma mais refinada espécie de 'selecção natural' como homem.» E mais adiante o referido autor acrescenta ainda que lhe parece não sermos capazes de nos libertarmos do perpétuo movimento de vaivém entre «a culturização da natureza e a naturalização da cultura». Assimilar o mundo da natureza ao mundo da sociedade e vice-versa é uma forte tendência dos homens de todas as épocas, mas introduzir levianamente essa noção na análise e interpretação científicas é lançar a confusão e levantar obstáculos à compreensão de uma e outra. Já na concepção medieval do mundo a hierarquia de uma sociedade estática se reflectia na hierarquia do próprio universo. E muitos animais serviam, por exemplo, de modelos de força moral, como a formiga com a sua vida laboriosa e activa, o leão com a sua coragem, o pelicano com a sua abnegação, etc. (cf. Bernal, 1969). As fábulas como género literário, onde os protagonistas são animais, traduzem desde a antiguidade o mesmo pendor, e não faltam testemunhos de que os homens sempre inventaram culturas influenciadas pelas suas ideias sobre a natureza, ou que a imagem que tinham desta reflectia em maior ou menor grau os seus costumes e modos de vida. A ideia de uma sociedade estagnada, imutável, dominada por classes conservadoras e reaccionárias, impõe ou sugere uma natureza que não muda, favorece a eclosão e desenvolvimento de ideias que apontam para a existência de um universo fixo, hierarquizado, concepção esta que, sob forma teológica, filosófica ou de teoria científica, se harmoniza com a estrutura social e política. Ajustam-se e mutuamente se justificam. Se no passado era a teologia, agora são certas teorias científicas no âmbito da biologia que caucionam sistemas reaccionários e/ou totalitários. A própria teoria da evolução e os modernos estudos sobre o comportamento e, acima de tudo, a selecção natural, que entretece todas as ideologias que se apoiam no darwinismo clássico ou actualizado, se servem, é certo, um modelo de sociedade em mudança, podem justificar também políticas de submissão e atropelos à liberdade e dignidade do homem. Humanar a natureza e naturizar o homem parecem-me, assim, duas tendências inevitáveis, existentes com maior ou menor intensidade desde as nossas origens, tendências que não desapareceram com o advento da ciência moderna, antes se acusaram e tomaram nova dimensão, sobretudo a partir da altura em que a explicação teológica do homem e da sociedade foi substituída por uma ideologia biológica, que, como toda a ideologia, corresponde a um sistema de crenças, a uma concepção do mundo em dada época e lugar, nutrida ou inspirada por valores, tradições (ou sua negação), revoltas, desejos, e condições sócio-económicas e culturais dos homens desse intervalo histórico. As grandes teorias biológicas são como todas as teorias científicas - transformam-se com o tempo, têm a sua história e não são estranhas, nas suas formulações, às ideias dominantes na sociedade, aos seus movimentos de fundo e às relações económicas predominantes. Isto em nada diminui as virtudes da ciência, como meio de acesso ao conhecimento objectivo, a sua coerência lógica, os seus métodos, o seu antidogmatismo, o seu carácter inacabado, a sua renovação permanente, a sua ousadia e prudência combinadas para duvidar e rever, para evidenciar erros, para comprovar ou questionar a imagem provisória conseguida da realidade. A maior cautela se impõe, portanto, quando se pretende caucionar com a biologia as ideias e factos políticos e sociais. Nestas tentativas nem sempre o errar é inocente, há por vezes especulação fraudulenta, noutras verificam-se exageros, falsas analogias, metafísicas ocas, generalizações abusivas, etc.. O respeito que ainda merecem a ciência e os seus métodos de pesquisa serve de salvo-conduto para avalizar filosofias e políticas que, se são muito respeitáveis em si mesmas, já não o serão se desse passo as considerarmos mais «científicas» ou «verdadeiras» do que outras não dispondo de tal abonação. O que me parece fecundo é a crítica das ideologias e filosofias à luz das aquisições científicas, e não tanto o simplesmente creditá-las por estas, e sem se esquecer o facto fundamental de que o conhecimento científico apenas abraça uma área relativamente reduzida das questões e factos que interessam aos homens, não se negando, portanto, de modo nenhum o alto valor da especulação filosófica, cujas virtudes são inegáveis, como meio de o espírito humano obter aquela profundidade e liberdade de imaginação e de crítica que o rigorismo e limitação científicas não permitem, em regra, atingir. Adopto, em boa parte, as ideias de Bertrand Russell sobre as relações da filosofia com a ciência. Disse ele que «a filosofia consiste em especulações sobre matérias acerca das quais ainda não é possível obter um conhecimento rigoroso», que «ciência é o que nós conhecemos e filosofia o que não conhecemos». Mais adiante, perante a questão que lhe foi posta por Woodrow Wyatt («para que serve a filosofia?»), Russell responde dizendo que a filosofia tem realmente duas utilidades, uma delas sendo a de manter viva a especulação «sobre coisas que ainda não são susceptíveis de tratamento científico; no fim de contas, o conhecimento científico apenas abarca uma parte muito reduzida das coisas que interessam a humanidade. ..» Alargar a imaginação no campo das hipóteses explicativas do mundo é uma das utilidades da filosofia, mas para B. Russell há ainda outra igualmente importante, que consiste em «mostrar que há coisas que pensávamos conhecer e que não conhecemos. Pensar em coisas que poderemos vir a conhecer e por outro lado verificar modestamente o quanto se assemelha a saber e não é saber» (v. Russell. 1960).
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