PERFIL DE G.F. SACARRÃO
Maria Estela Guedes

In: Maria Estela Guedes: "Prof. G.F. Sacarrão"
Museu Nacional de História Natural
Biblioteca do Museu Bocage
Lisboa, 1993, 44 pp. e 8 anexos

Germano da Fonseca Sacarrão morreu em Lisboa, a 22 de Outubro de 1992. Na manhã de 23, deram-me a notícia em termos que se adaptam na perfeição à imagem que guardo dele, podendo embora não corresponder exactamente à verdade: G.F.S. teria saído para ir comprar flores à mulher, acamada com uma gripe, na rua vitimara-o uma síncope cardíaca.

De facto, sucumbiu na rua, o destino poupou-o ao que mais o angustiava: a incapacidade mental ou física. Atlético, amante do desporto e do ar livre, conservar-se-ia um belo homem até ao fim. Galante com as mulheres, tinha sempre com elas uma palavra charmosa. Reparava no que vestiam, aprovava. De uma enorme jovialidade, sempre bem humorado, sabia cultivar a simpatia feminina. Porém, só uma pessoa colocava ao nível da admiração que invariavelmente demonstrava pela mulher, Maria Manuela: o seu mestre Adolf Portmann.

Nas raras ocasiões em que o génio expansivo cedia à melancolia, queixava-se por já poucos amigos lhe restarem. Os da sua geração, a morte já os levara quase todos um a um. Preocupava-se com o futuro, provinha de uma família de escassos rendimentos, e ele mesmo, apesar de ter atingido o topo da carreira universitária, não nadava propriamente em dinheiro. A sogra, que durante anos vivera com o casal, morreria em idade avançada uns dois meses antes dele, em situação de total dependência. Percebia-se que estes problemas contribuiam para que encarasse o futuro com inquietação. Os amigos mais íntimos, professores da Faculdade de Ciências, sabiam-no bem.

Inimigos, também os teria. É sobejamente conhecida a cortês animadversão, herdada talvez do Prof. Ricardo Jorge, que votava ao Prof. J. A. Serra. Foram os três directores do Museu Bocage, o historial da casa registará um dia como anedotário o acervo de factos que deu origem à publicação do manifesto anti-Serra, intitulado Um homem nefasto (1963), saído da pena elegante e purista de Ricardo Jorge. Nada que nuble os picos intelectuais a que cada um subiu, tão-só incidentes próprios do conflito de gerações e de autoridades.

Filho de Henrique Sacarrão e de Maria Rosa da Fonseca Sacarrão, Germano nasceu na freguesia de Santa Isabel, de Lisboa, a 19 de Agosto de 1914. Frequentou o Liceu de Pedro Nunes e viria a concluir o curso complementar dos liceus no de Passos Manoel, em 1932.

Aos dezoito anos está matriculado na Universidade de Lisboa, não porém em Ciências Biológicas. O primeiro ano na Politécnica corre mal, corre mal sobretudo numa área que costuma ser o terror dos humanistas, e ele era-o: as matemáticas. No seu caso particular, Álgebra Superior. Ainda bem que essa opção pelos Preparatórios da Escola Naval foi rapidamente abandonada, ou em vez de um brilhante biólogo teríamos tido um obscuro comandante da Marinha.

É assim que em 1933 o vemos inscrever-se em Química Orgânica, Botânica Geral e Desenho Aplicado às Ciências Biológicas, cadeiras da licenciatura por que trocara os bancos da Escola Naval.

Assenta, não errou na escolha, as notas serão cada vez mais altas até chegar ao fim do curso. Em 1935, já obtém dezassete valores a Zoologia Sistemática, bom com distinção. A partir de agora estará em condições de requerer os benefícios da bolsa de estudo, que lhe será concedida todos os anos.

Em 1936, às Ciências Biológicas acrescenta outros estudos, visto que mudara a sua situação. Com efeito, o mancebo também frequenta agora, na categoria de soldado, com o número 153/35 da 3a Companhia de Saúde, o Curso de Oficiais Milicianos.

No ano seguinte, concluída a licenciatura em Ciências Biológicas, requer o respectivo diploma. Por ele ficamos a saber que a informação final foi de quinze valores, bom com distincão.

Em 1937-1938 recebe bolsa de estudo para tirar as cadeiras de Pedagogia e Didáctica, Psicologia Escolar, Higiene Escolar, História da Educação e Psicologia Geral, da secção de Pedagógicas, curso ministrado na Faculdade de Letras. Obtém desta maneira o diploma de professor do ensino liceal e particular, que usará para dar aulas em vários estabelecimentos de ensino em Lisboa, entre eles o Colégio Moderno, onde terá por aluno o actual Presidente da República, Mário Soares, que lhe dará a honra de se ter mantido seu amigo até ao fim.

De 1938 a 1941 recebe bolsa de estudo do Instituto de Alta Cultura para estagiar no Centro de Estudos Histofisiológicos da Faculdade de Medicina. Aqui receberá orientação dos professores Celestino da Costa e Xavier Morato.

Em 1942, de novo como bolseiro do IAC, faz um estágio na Universidade de Genebra, sob orientação dos professores Émile Guyénot, Kitty Ponse e Jean Perrot, aprendendo técnicas laboratoriais, métodos de cultura da Drosophila e outros.

Durante o ano de 1943, estagiou com o Prof. Adolf Portmann no Zoologische Anstalt da Universidade de Basileia, industriando-se na matéria da sua maior vocação científica - a embriologia geral e dos cefalópodos. A. Portmann foi referência central na carreira de G.F. S.. Para sempre o consideraria seu mestre. Falava dele muitas vezes, corn certa ternura e enorme admiração intelectual, não obstante uma reserva: Portmann era um teísta e G.F.S. ateu. G.F.S era um ateu interessadíssimo em todo o caso nas várias manifestações do espírito. Uma das últimas conversas que travámos na biblioteca incidiu justamente num artigo de Portmann versando a história das teorias acerca da origem do homem, que ele acedera, ao fim de muita prece, a emprestar para fotocópia. Mais uma vez, condescendente, afirmara: "O meu mestre Portmann escreve com muita subtileza, nem sempre é claro... Sabe, é que ele acreditava em Deus...".

Em 1944 tomou posse do lugar de naturalista do Museu e Laboratório Zoológico e Antropológico (Museu Bocage), a convite do Prof. Ricardo Jorge. Ocupou-se sobretudo da colecção de aves, data desta altura o trabalho que o levaria à publicação de três inventários da avifauna moçambicana, em parte fundamentados no estudo de duas colecções oferecidas pelo Prof. R. J. Santos Júnior, feitas na Zambézia e no Niassa. Estudo taxonómico que não teria seguimento, a não ser no inventário Os cefalópodos da costa de Portugal (1957). A classificação não lhe despertava interesse científico, chegava a considerá-Ia um hobby. De um lado, via que a grande tradição da zoologia portuguesa, até tempos muito próximos de nós, fora quase exclusivamente classificatória. Não obstante, não fôramos capazes de conjugar esforços para erigir uma fauna portuguesa, à semelhança de uma Faune de France, para já não falar de uma Flora und Fauna des Golfes von Neapel. De outro lado, tendia a considerar limitados os horizontes da taxonomia, por ser mais descritiva e inventariadora do que reflexiva. O Prof. Sacarrão era um homem de pensamento, desagradava-Ihe o trabalho que não problematizava os dados da investigação, e que por isso não conseguia alcançar resultados verdadeiramente importantes para a ciência.

Em 1951 é nomeado primeiro-assistente do quadro da Faculdade de Ciências de Lisboa. Entre esta data e o jubileu, ministrará quase toda a gama de disciplinas, teóricas e práticas, da secção de Zoologia: Embriologia e Histologia, Invertebrados, Metodologia das Ciências Biológicas, Curso Geral de Zoologia, Zoologia Sistemática, Ecologia Animal e Zoogeografia, Zoologia Médica, Anatomia e Fisiologia Comparadas, e Antropologia.

Neste mesmo ano, 1951, faz o doutoramento, com apresentação da tese "Sobre as primeiras fases da ontogénese de Tremoctopus violaceus" (1949). Sairá aprovado com dezoito valores, muito bom com distinção. Passara pela prova de ser examinado em primeiro lugar pelo Prof. J. A. Serra. Mais suaves terão sido os demais jurados do tribunal académico, os professores A. Celestino da Costa, M. Barbosa Sueiro e Ricardo Jorge. Cumpridos os ritos iniciáticos, recebe o diploma de Doutor a 21 de Setembro de 1951.

Oito anos mais tarde, obtém o título de professor agregado de Zoologia e Antropologia, por portaria publicada no Diário do Governo, 2a série, número 71, de 25 de Março de 1959. Para as provas de habilitação apresentara a tese "Sobre a evolução ontogenética das relações embrião-órgão vitelino nos cefalópodos" (1955).

Faltam as últimas provas, as que lhe darão o direito de passar da cadeira à cátedra, em símbolo, o trono académico. Rematam a 8 de Novembro de 1960 com a lição "A ontogenia dos cefalópodes no quadro dos moluscos - aspectos do problema". Em consequência, é nomeado professor catedrático da 3a Secção.

Chegados aqui, muitos desanimam. Atingido o topo da carreira universitária, a que mais podem aspirar? Mas não há limites para a ânsia de saber, nem a cátedra corresponde ao tecto do conhecimento. É apenas um solo razoavelmente seguro em que pousar os pés de indagações mais amplas e livres. A pouco e pouco, G.F.S. inflectirá para o terreno sedutor da filosofia. Por enquanto, porém, ainda os embriões de lulas e polvos o mantêm agarrado ao micrótomo e ao microscópio. Desforra-se da clausura nos trabalhos de campo, ainda conheceu a traineira do Laboratório Marítimo da Guia, a Physalia, na qual se faziam saborosas expedições para colheita de invertebrados marinhos. E não resisto a registar uma anedota que ele contava desses tempos remotos.

Uma das alunas do Prof. Ricardo Jorge era especialmente maçadora. Queria o nome científico de todas as ervinhas que ia apanhando em certa viagem de estudo à Serra da Arrábida. Delicado e paciente, o Prof. Ricardo Jorge lá ia desfiando o rosário dos nomes latinos. Até que, a páginas tantas, mostrando-lhe um ramito qualquer, a jovenzinha persiste na sua porfia classificatória: "E esta planta como se chama, senhor professor? " Fartinho, o Prof. Ricardo Jorge, que para acréscimo gostava mais de poliquetas do que de botânica, ali inventa logo uma nova espécie para a ciência: "Olhe, menina, isso é uma Verbena de La Paloma!"

Escusado dizer que a donzela ficou dali em diante conhecida por Verbena de La Paloma.

Ao campo, G.F.S. vai sobretudo na qualidade de ornitólogo, armado de caçadeira e binóculos. Um dia, bem mais tarde, sentirá algum desdém por certos amadores, com tal golpe de vista que identificam um Passer domesticus a olho nu e a milhas de distância. Baptizá-Ios-á com o nome de "bird-watchers", expressão que, informava ele, provinha de uma tirada jocosa de Shakespeare, salvo erro de "As Alegres Comadres de Windsor", a propósito sem dúvida dos que em vez de fazer preferem ver. Era uma pessoa divertida e maliciosa.

Entre 1964 e 1971 foi director da Faculdade de Ciências de Lisboa. E director do Museu e Laboratório Zoológico e Antropológico (Museu Bocage) de 1964 a 1974, tendo pertencido ao seu Conselho de Gestão em mandatos posteriores.

Dirigiu o Projecto de Investigação (LB 2) do Instituto Nacional de Investigação Científica (1971-1976), prolongado depois pelo Centro de Fauna, cujos resultados foram publicados em revistas várias, em especial na directamente ligada ao Centro, Estudos sobre a Fauna Portuguesa.

Dirigiu, foi co-director ou fez parte da comissão de redacção das revistas Arquivos do Museu Bocage, Protecção da Natureza, Estudos sobre a Fauna Portuguesa, Naturalia e Boletim da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais.

Foi sócio da Liga para a Protecção da Natureza, da Sociedade de Geografia, da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, do General Embryological Information Service e da Sociedad Española de Ornitología.

De acordo com um documento encontrado entre as suas separatas, o Relatório da Direcção da Liga para a Protecção da Natureza, Ano de 1960, e anexos, foi secretário da direcção da Liga no biénio de 1959-1960 e eleito vice-presidente a 27 de Fevereiro de 1961 para o biénio seguinte. Foi membro fundador, sócio nº 1 e presidente da Associação Portuguesa de Biólogos nos dois primeiros mandatos da direcção, 1987-1992.

O seu trabalho de investigação incidiu de maneira mais profunda e extensa na embriologia dos cefalópodos, área que o tornou conhecido internacionalmente. Contam-se por centenas as citações de trabalhos seus, em obras tão fundamentais como o Traité de Zoologie, dirigido por P .-P .Grassé, e por parte de autoridades como Chr. P. Raven, J.Z. Young, Libbie Harriett Hyman, Celestino da Costa, Adolf Portmann, G.R. De Beer e tantos mais. Um só exemplo bastará para dar conta da importância da investigação em embriologia: ela é a base dos trabalhos em curso no Laboratoire Arago. Cito, do Curricutum vitae (1960), uma carta de Adolf Portmann para G.F.S., datada de Dezembro de 1959:

Mais Ia ptus grande utitité directe de vos travaux doit être signalée pour une nouvelle série de travaux qui sont en route depuis deux ans et dont la publication va débuter bientôt. Ce sont des recherches qui reprennent nos études sur ta blastocinèse sur le vivant et le matériel fixé. C' est te Docteur Markus von Orelli, élève de mon Laboratoire, qui travaille à Banyuls pendant la saison de reproduction.

M. von Orelli me signate (et je l'ai vérifié dans nos discussions fréquentes) que vos recherches comparées et cettes sur Tremoctopus sont un point de répère et de départ très important pour lui. (...)

Je regrette qu'on ne pourra pas citer les pages [refere-se à parte da sua responsabilidade, sobre cefalópodos, no Traité de Zoologie de Grassé, ainda em fase de impressão] où vos travaux seront cités, mais vous pouvez utiliser en toute tiberté mes indications et certifier que vos recherches sont à ta base de ta nouvelle série de travaux que le Laboratoire de Bâle entreprend au Laboratoire Arago avec le grand concours matériel de la direction du Prof. Georges Petit.

Por gentileza de uma fada, cai-me nas mãos outra carta, desta feita inédita (de Lewontin) a merecer referência, pois documenta dois aspectos curiosos da carreira do autor. O primeiro é que ele pouco ou nada fez para se autopromover. Nem as separatas dos trabalhos distribuía, temos ainda hoje algumas disponíveis para oferta, mesmo das mais antigas, incluindo as teses. A partir de certa altura, também se desinteressou de encontros internacionais, muito embora amasse a palestra, e estivesse sempre disposto a dar uma lição a algum estudioso que aparecesse pela biblioteca. Depois de jubilado, o Prof. Sacarrão visitava regularmente a biblioteca do Museu Bocage, até porque lhe recebíamos a correspondência. De quinze em quinze dias, uma tarde ali a passava, tagarelando, distinguindo-me com aulas privativas em espinhosíssimos meandros biológicos, lendo e comentando as cartas que recebia. Por vezes, convites para conferências, colóquios, congressos internacionais. Inventava mil desculpas para não ir, chegavam a ser pueris: "É muito longe, já não tenho paciência para essas coisas! ..." Realmente, nunca tivera, encarava com vaga desconfiança os congressos, que a seus olhos tinham mais o ar de protocolo social do que de ciência. Costumava troçar dos "cientistas da mala", os que passavam o tempo nos aviões, entre dois congressos por semana, e já não tinham tempo para se sentar ao microscópio ou sequer para ler um livro. E isto afligia-o, via o grau intelectual das novas gerações baixar aos níveis do perigo.


Outro aspecto curioso é o da circunscrição da sua obra às publicações portuguesas. Sabe-se que hoje, infelizmente, o currículo assenta mais na pretensa qualidade das revistas do que na qualidade dos trabalhos publicados, e a nossa tendência de provincianos é para glorificarmos o estrangeiro. Muitas vezes ele dizia que, se um trabalho é bom, mesmo redigido na nossa língua, ultrapassa as fronteiras, pois os interessados o mandam traduzir. Na verdade, a maioria dos ensaios científicos de G.F.S. foi publicada ou nos Arquivos do Museu Bocage ou na Revista da Faculdade de Ciências de Lisboa. Não precisou de os enviar para Londres nem Paris, os cientistas estrangeiros descobriram-lhes mesmo assim a importância, caso dos investigadores no Laboratoire Arago, e caso vertente de R.C. Lewontin, biólogo na moda, autor de best-sellers como Not In Our Genes, traduzido entre nós pela Europa-América com o título de Genética e Política (1987). G.F.S. é o autor da introdução e Lewontin escreve-lhe, dos Estados Unidos da América (ver imagem acima), a manifestar gratidão pelo excelente prefácio, e a reconhecer ao mesmo tempo algo que é de capital importância para um investigador, para mais oriundo de um obscuro país em que, reza o ditado, santos da casa não fazem milagres - a prioridade das reflexões de G.F.S. sobre problemas de natureza bio-sociológica.

Há tendência para relevar o mérito de divulgador de G.F.S., e ele foi-o, sem dúvida. Note-se, entretanto, que muito do que nos livros parece divulgação é mais do que isso, assenta em reflexão original. Por isso é que Lewontin lhe pede os trabalhos sobre a metáfora, há dois em artigo, um de 1984, na Naturalia, outro de 1986, nos Arquivos do Museu Bocage. Um capítulo de Biologia e Sociedade (1989) também lhe é dedicado. Ora, vejo eu nas revistas que vão chegando à biblioteca, provenientes um pouco de toda a parte do mundo, que a metáfora é tema da actualidade. Está na moda para a ciência, claro. Metaforicamente falando, no campo das letras, ela é algo como um fóssil vivo, pela primeira vez descrito por Aristóteles. Ao tempo em que Aristóteles a descrevia na Poética, estava longe dos perigos da extinção. E creio bem que pelos séculos dos séculos ainda há-de sobreviver sem sobressaltos de maior. Agora na ciência, ela é um tema novo, G.F.S. é um pioneiro ao apontar-lhe a nocividade. Que me lembre, sempre a discuti com ele, o Prof. Sacarrão pugnava por um discurso científico objectivo, expurgado de expressões equívocas e falseadoras da realidade. Já pelo menos em 1982, n' A Biologia do Egoísmo, ele se insurge contra os malefícios da metáfora. Na dedicatória do exemplar que me ofereceu, o seu interesse por tão retórico assunto manifesta-se de forma apaixonada.

O problema da metáfora, para uma pessoa de formação literária, cinge-se um pouco ao "não faz mal", pois é próprio da literatura todo o tipo de ficcionamento do real, onirismo e fantasia que ela instaura. Desde que o cientista não abuse, a metáfora pode até transmitir de forma acessível um conceito complexo. Consiste numa transferência, transporte de significado de um para outro campo do real. "Centro Metafórico", em grego, e na Atenas de hoje, é letreiro das empresas de transportes e mudanças. De outra parte, não há linguagem nenhuma isenta em absoluto de figuras de retórica, salvo talvez a matemática. Em suma, do ponto de vista das letras, a metáfora existe com a naturalidade dos camiões de mudanças e das aves migradoras, não levanta problemas de maior, a menos que seja pantafaçuda ou hiper-abundante a ponto de se tornar poluidora.

Para além da prova de reconhecimento das prioridades, a carta de Lewontin é muito significativa, ao dar implicitamente razão aos receios de G.F.S. - é natural que o discurso científico precise de facto de saneamento ideológico. A metáfora nunca é inócua, nasce do impulso, consciente ou inconsciente, de moldar pelo nosso o ponto de vista dos outros. Em resumo, mesmo na poesia, o discurso figurado resulta da intenção de o poeta se esquivar à verdade para manipular a sensibilidade alheia. Que o poeta é um fingidor, todos o sabemos. Mas passamos por cima da evidência de que a nocividade não é da linguagem, sim da intenção de quem a usa desta maneira e não daquela. É claro que a linguagem, em mãos pouco escrupulosas, é uma arma ofensiva, instrumento de manipulação ideológica. O Prof. Sacarrão preocupava-se com o facto de o discuro biológico transportar conceitos da esfera zoológica para a antropológica e vice-versa. Dizer que os genes são egoístas ou altruistas, que entre os animais há luta pela sobrevivência, que só sobrevivem os mais aptos, que há estratégias adaptativas, etc., era para ele metaforizar. Ora, se realmente também sobrevivem os menos aptos, se espécies bem adaptadas se extinguem, se os genes não têm sentimentos, se as abelhas não dispõem de aparelho conceptual que Ihes permita estudar tácticas e desenvolver estratégias, então estamos sem dúvida na presença de metáforas. Metáforas que aliás resultam em erros científicos, com a agravante de que, em sistemas políticos não democráticos, uns homens as podem usar como legitimações biológicas para liquidarem outros homens. Se o Prof. Sacarrão, que nunca demonstrou tendências pessimistas, se inquietava tanto com a dimensão perniciosa da metáfora, é porque o discurso científico precisa de saneamento.

Outra área de estudo contínuo foi a ornitologia, a que dedicou artigos e livros de índole geral, caso de O Mundo das Aves (1956). No domínio da cinegética, publicou o livro Aves de Caça e sua Biologia (1963), sendo de sua autoria o terceiro capítulo da obra A Caça em Portugal (1963). Refira-se ainda, dada a sua frequente consulta por parte de ornitólogos, tradutores e curiosos, a lista dos Nomes portugueses para as aves da Europa (1979) , elaborada de parceria com A. A. Soares. Os estudos mais especializados incidiram sobre Elanus caeruleus, o peneireiro-cinzento, Cyanopica cyanus, a pega-azul, e Passer hispaniolensis, o pardal-espanhol.

Entretanto, dada a sua extraordinária cultura biológica, o Prof. Sacarrão ocupou-se de inúmeras outras espécies animais e temas. Evidencie-se a protecção da natureza, a zoogeografia e a ecologia, de que são documento mais óbvio as obras publicadas pela Universidade de Lisboa e pela Comissão Nacional do Ambiente. A adaptação também mereceu um livro, tal como a evolução, aliás desafio central de toda uma vida e obra, e que em artigos mais recentes se manifesta sob a forma de divulgação e discussão do darwinismo. De resto, o livro Biologia do Egoísmo é uma reflexão sobre a sociobiologia enquanto continuadora das teorias de Darwin.

G.F.S. foi talvez o maior divulgador de Darwin entre nós, se bem que afirmasse ter certas reservas em alguns pontos da teoria da evolução. Perturbava-o que a Bíblia fosse utilizada em universidades (dos Estados Unidos, por exemplo) como fonte de informação sobre a origem do homem, e que a obra de Darwin tivesse passado completamente ao largo de Portugal, e ainda hoje fosse quase nula a sua implantação no ensino, mesmo superior. Tolerante e democrático, compreeendia, mas não deixava de habilmente censurar que um zoólogo da craveira de Barbosa du Bocage, contemporâneo de Darwin, tivesse podido cumprir uma longa carreira classificatória, sem por um instante ter dado sinal, nos seus trabalhos científicos, de conhecer A Origem das Espécies. Ora o espólio de Barbosa du Bocage dá conta pelo menos da existência de artigos em que se fala do naturalista inglês. E é de todo impensável que B. B. não o tivesse lido. Ignorou-o por conveniência social, tal como Darwin, para se proteger, simulará mal conhecer Lamarck, cujas teses transformistas são em boa medida precursoras do darwinismo.

Lendo o seu artigo O darwinismo em Portugal (1985), conclui-se naturalmente que Darwin nunca aportou ao nosso país. E se só um português seu contemporâneo parece ter-se interessado a ponto de travar com ele alguma correspondência - Sobre o método de Darwin e a episódica relação com Arruda Furtado (1986) -, deveu-se o caso talvez à circunstância de Arruda Furtado ser açoreano e o Beagle ter aportado aos Açores.

Dada igualmente a grande cultura geral de G.F.S. no domínio das humanidades, em particular da filosofia, muitos dos seus trabalhos assumem carácter biofilosófico. Neste âmbito se inserem sobretudo os livros publicados na Colecção Universitária da Europa-América, como A Biologia do Egoísmo (1982) ou Biologia e Sociedade (1989), e ensaios como Ontogenia, evolução e sociedade (1977).

Jubilado em 1984, a sua vida sofreu uma alteração em vários aspectos dolorosa. Sentia muito a falta dos discípulos. A par da vocação científica de G.F.S., há a considerar a pedagógica, no seu sentido mais ateniense, que ao magistério associa a crítica. E se ele gostava de criticar a política, os políticos, os impostos, a injustiça social, tudo o que respeitava à res publica! Tal como gostava de discutir problemas intelectuais, de evidenciar a sua eventual impossibilidade de solução no quadro dos limites adaptativos do cérebro. "A realidade é uma invenção do nosso espírito", repetia, para indicar que o cérebro tem barreiras de conhecimento, está adaptado a um dado mundo, o mesocosmos, e não a outro. Era com alegria que partilhava um vasto conhecimento que reputava escasso. Eu só sei que sei muito pouco é afinal a medida socrática da sabedoria de todo o honesto filósofo, e digo honesto e não humilde, pois G.F.S., à semelhança de Sócrates, condenado à morte por ter demonstrado que sabia mais do que os políticos, os artífices e os poetas, era orgulhoso.

Gostava finalmente de orientar valores novos e apoiava com entusiasmo a carreira científica e pedagógica dos seus antigos alunos.

Dotado de brilho e grande facilidade de argumentação, amava o cavaqueio, que entabulava com graça e verve não só com os seus pares como com pessoas de diferente grau e formação intelectual. E sabia-se fazer entender, mesmo quando a conversa rumava para paragens de alta especialidade científica.

Também sentia curiosidade pelas letras, era um leitor de Fernando Pessoa, e intrigava-o uma questão em aberto - a garantia de qualidade da obra de arte. Lera Kant, Kant diz que o sublime não é uma grandeza, sim o que é grande acima de qualquer comparação; que é uma faculdade do espírito que ultrapassa todo o padrão de medida dos sentidos. Em suma, lera em Kant que o sublime é uma faculdade de quem cria e de quem aprecia e não da obra de arte. Então o que há na arte (de objectivamente testável, parte-se do princípio) que permita a alguém invocar o sublime?

Por vezes falava dos falsos - os falsos Rembrandt, os falsos Rubens. Mas a falsificação só afecta o valor monetário das obras, aliás há falsos mais valiosos que os verdadeiros, basta que o falsário seja mais importante que o falsificado, não responde de modo nenhum à pergunta: o que há de especificamente artístico na obra de arte?

E evocava com frequência a falsificabilidade como teste do valor científico de uma teoria pois, como é natural, também lera Karl Popper. Indignava-se com o plágio, a desonestidade intelectual, a submissão da ciência à ideologia, por isso lembrava o escândalo de Lysenko, biólogo soviético que pecara contra a ciência por constrangimento político, ao pretender que os seus trabalhos com os híbridos demonstravam que os caracteres adquiridos são transmissíveis por via hereditária. Esta história é amplamente contada em Biologia e Sociedade (1989), obra que reúne e desenvolve vários temas tratados por G.F.S. em artigos dispersos.

Algo perplexo, o Prof. Sacarrão tinha no entanto a infinita bondade de afirmar que os escritores, livres da obediência a métodos científicos e da obrigação de provarem as suas afirmações, não raro acertavam por intuição em alvos a que o cientista só podia chegar com legitimidade ao cabo de imenso teste laboratorial. Este trato familiar com a literatura e a filosofia dera-Ihe gosto pela linguagem. De resto, havia na sua biblioteca pelo menos uma obra de linguística, as actas de um congresso em que figura Noam Chomsky, criador da gramática generativa, um defensor da origem genética da linguagem. G.F.S. interessava-se pela discussão do que no comportamento humano é cultura e do que nele é natureza. Inclinava-se para a dominância do adquirido, todo o comportamento do homem estava em seu entender moldado pela cultura e ideologias. Mais uma vez, posta noutros termos, a tese de que a realidade, tal como a percebemos sensorialmente, não existe, o mundo é uma invenção do nosso espírito. As suas grandes fixações intelectuais, nos últimos anos, eram por um lado o tempo histórico como factor de evolução, e por outro essa tese fascinante mas difícil de entender, segundo a qual o mundo é criação humana. Difícil de entender por quem, como eu, não tem permanente na consciência o conceito de espécie ou, melhor dizendo, não ultrapassa o nível de conceito para entrar nas suas implicações biológicas. Por isso, logo contrapunha: se o mundo fosse invenção nossa, não o veríamos cada um de sua maneira? O que naturalmente estava em causa não era a idiossincrasia individual, que aliás também cria o mundo à sua medida, sim a origem e evolução do cérebro da espécie humana.

O que pretendia recordar, entretanto, ao aludir à linguagem, era a sua excepcional capacidade de comunicação. Além de bom orador, G.F.S. gostava de brincar com as palavras, de inventar neologismos com fim satírico, ou de baptizar com designação jocosa o que o irritava. Como conta o Prof. E.G. Crespo, no editorial do nº 21 de O Biólogo (1993) , Germano da Fonseca Sacarrão dava o nome de "línguas de gato" aos artigos altamente especializados. É que as línguas de gato são uns biscoitos de todo insípidos e desprovidos de potencial nutritivo. Há manjares bem mais suculentos e apetitosos.

Confia-me por sua vez o Prof. J.A. Ouartau, seu antigo discípulo, que este gosto pelos neologismos também se patenteia nos trabalhos científicos. E eram apropriados o bastante para se terem tornado populares. Dá como exemplo um vocábulo que usa nas aulas, "parasitoidismo", tipo particular de parasitismo em que o parasita se comporta como um predador, matando o hospedeiro.

Uma nota biográfica saída de uma biblioteca, e após o manuseamento de algum espólio, não pode deixar em claro curiosidades que ajudam a avivar um perfil - G.F.S. lia muito e de tudo, lia também os colegas e ex-alunos. Tal facto é notório nas notas apontadas à margem, pois ele era do género de pessoa que não sacraliza o livro. Não era um bibliófilo, vê-se que os livros não passavam para ele de ferramentas de trabalho. Por isso profanava-os, sublinhando e rabiscando por vezes ao ponto do palimpsesto. Tal acontece por sinal num artigo de J.A. Serra, com o qual já sabemos não se ter entendido como Deus com os anjos. Notas de toda a ordem, mas a curiosidade maior é esta: defeitos, a apontá-Ios, não os apontava só aos estranhos, emendas aparecem também nos seus próprios escritos, não se tratando de gralhas, evidentemente. O pormenor dá a imagem da sua acuidade crítica, isenção, integridade intelectual, e consideração apesar de tudo; se a sua hostilidade fosse malsã, ignorava soberanamente, não perdia tempo a ler os inimigos. Daqui se depreeende ainda a sua avidez por um conhecimento múltiplo que lhe permitisse o que afinal sempre demonstrou: a integração da biologia numa transdisciplinaridade capaz de suportar a compreensão global dos problemas. Como já se referiu, G.F.S. via com maus olhos a exclusiva especialização, justamente por excluir a apreensão global da realidade do mundo vivo.

Jubilado, deixou de lado projectos científicos, sobre aves e moluscos, por consciência de que jamais teria tempo para os levar ao termo. Entre eles, a continuação do estudo (1978) da composição do substrato de Petricola litophaga Retzius, um molusco bivalve. Ao longo dos anos, nas prolongadas férias na praia, o Prof. Sacarrão fora recolhendo dados acerca do meio em que esse animal vivia, uma zona poluída por esgotos. Aparentemente, tal como as rosas de que fala James Lovelock, n' As Eras de Gaia, que preferem a poluição londrina às bucólicas pastagens da Escócia, as Petricola observadas por G.F.S. não só eram insensíveis à contaminação das águas pelos detritos do esgoto, como pareciam rejubilar com o maná. Ele, que tanto se ocupou da protecção da natureza, manifestava reservas quanto a certos "verdes" e ecologistas, pois, mais uma vez, distinguia com acuidade crítica a fronteira entre a ciência desinteressada e a dependente de interesses políticos, económicos e ideológicos.

Ficou inconcluso igualmente, por a morte o ter colhido de súbito a meio do trabalho, um livro para a Europa-América, A Ecologia do Espírito. De novo uma obra de biofilosofia, decorrente da questão evolutiva que o desafiava, a origem do cérebro e por conseguinte da inteligência humana. Da última vez em que tive oportunidade de falar com ele, confessou, entediado, que tinha encalhado num capítulo do livro, o dos "palavrões imateriais". E como intitular essa parte em que intentava banir do discurso científico expressões pomposas como "holismo", "élan vital" e tantas outras, que não querem dizer nada? Sugeri: "Os palavrões imateriais ". Ajustando melhor o aparelho auditivo, pois era um tanto surdo, inclinou-se para mim, na expectativa. Repeti, sorrindo: "Os palavrões imateriais..."

Estagnou, a pensar decerto que bem lhe apeteceria, mas o discurso científico é protocolar, exige sisudez e mesura. E depois riu-se. Era compreensivo e apreciava a ironia.