Foto: Maria do Céu Costa
MARCIA KUPSTAS
O sinal luminoso piscou em vermelho e eu, na maior pressa! Pisei no travão, o carro guinchou em desespero, as rodas ainda ultrapassaram a passagem de peões.
_ Droga! – esmurrei o volante e olhei no relógio de pulso.
Atrasado! Pela quarta vez em duas semanas! Estava tramado com Irene, ia me esperar? Perdoar? E se pedisse perdão de joelhos?
Enquanto eu me atolava nesse mar de dúvidas, levantei a cabeça e vi uma coisa estranha, muito estranha e verde, sobre a passagem. Ficou mais estranha ainda quando moveu as asas.
Era um papagaio!
Pelo vidro retrovisor, vi a bicha de carros formar-se atrás do meu. Ouvia seus motores nervosos… O sinal ia abrir, os segundos voavam… “Voar?”, pensei. “Se aquele papagaio não voar dali rapidinho, adeus! Vira panqueca de espinafre no asfalto”.
Tive piedade por seu destino. Suspirei fundo e me decidi. Liguei as luzes de alerta, deixei a porta do motorista bem aberta e desci do carro.
O papagaio virou a cabeça e me encarou fixamente. Tinha olhos escuros e bem redondos. “Vai voar já-já e eu vou ficar com cara de besta, aqui no meio da rua”, pensei. Mas foi abaixar o braço para o aliviado papagaio empoleirar-se nele, ferrando as garras no tecido da camisa.
Nesse instante o semáforo ficou tão verde quanto as suas penas. Às minhas costas, a sinfonia de buzinas!
Depressa voltei para o carro. Tentei colocar o papagaio no banco do passageiro, nem pensar! O bicho ferrou ainda mais as garras no meu braço. Em desespero, manobrei para o estacionamento de uma farmácia.
_ Amigo, o senhor sabe alguma coisa desse papagaio? – perguntei ao atendente.
_ Sei que aqui não vendemos remédio de bicho. Tente na avenida lá de baixo.
Saí da farmácia, o vendedor me seguiu:
_ O estacionamento é só para cliente.
_ Se eu comprar alguma coisa, posso estacionar?
_ Pode por 15 minutos.
Comprei envelopes de aspirina, saí da loja, fui à esquina.
Apenas portões fechados. Mais além, um prédio de gaveto. Toquei a campainha da PORTARIA.
_ Pois não? – perguntou a voz, pelo interfone.
_ Queria saber se algum morador é dono de um papagaio.
_ É proibido ter animal de estimação aqui no prédio. – um suspiro e um resmungo. – Apesar de gente teimosa que tem gato, cachorro, esquilo! Vai ver tem até papagaio, lá sei eu!
Larguei o aparelho a reclamar sozinho e resolvi arriscar na campainha de uma casa vizinha. Séculos depois, surgiu à porta uma senhora gorda, de pijamas.
– Não quero comprar nada. – ameaçou bater a porta em minha cara.
_ Não sou vendedor! A senhora mora aqui e…
_ Claro que moro aqui! Há vinte e cinco anos eu moro aqui!
_ Então a senhora conhece o pessoal do bairro e…
Antes que pudesse completar o raciocínio, “conhece algum dono de papagaio?”, ela contra-atacou:
_ Não quero comprar papagaio, gajo. Acho até que é contra a lei vender papagaio.
_ NÃO SOU vendedor de papagaio!
_ Pobre infeliz, a chacoalhar deste jeito em sua mão! O senhor ainda machuca o bicho! Ora, como tem dono cruel nesse mundo!…
_ Mas EU NÃO SOU O DONO DO PAPAGAIO! – gritei em desespero absoluto. – Não quero cuidar dele!
_ Se não queria cuidar, por que arrumou bicho, ãh? Devia fazer uma denúncia na Sociedade Protetora dos Animais! Devia chamar a polícia! – estava a aumentar a voz.
Tratei de fugir antes que o pior acontecesse. Era uma loucura! Passei a mão pela testa suada, o papagaio se incomodou com o gesto e me bicou.
_ Ai! Mal-agradecido! O que falta acontecer agora?
Aconteceu a chegada do farmacêutico. Apontou para o estacionamento:
– O senhor tem de tirar o carro.
_ Eu sou freguês.
_ Por 15 minutos e o tempo acabou.
Voltei com ele à farmácia, comprei dessa vez um copo d’água e tomei as aspirinas ali mesmo. A ave mexeu as asas quando viu o líquido.
O atendente abriu o maior sorriso ao ver o papagaio beber água:
_ É tão bonito ver um dono cuidar assim do seu bichinho! – comoveu-se.
_ Mas eu não sou…
Então me veio a ideia:
_ Adoro este papagaio. É meu desde que eu era criança. Estava a levar o bicho ao veterinário e ele ficou com sede, então parei aqui. Olha, amigo… eu te dou uma nota de vinte se tu cuidares do papagaio por meia hora, porque tenho de buscar minha avó doente no hospital.
A mentira saiu inteira e lisa, feito um caroço que desgruda de abacate maduro. E foi engolida com casca e tudo.
_ Por meia hora?
_ Só meia hora, uma nota de vinte, se cuidares bem do Anacleto.
Até nome dei ao papagaio! Passei o dinheiro para o farmacêutico e me despedi do bicho (agora) de estimação, com grandes demonstrações de carinho.
Mal o carro virou a esquina, o telemóvel disparou a tocar. Era Irene.
_ Benzinho, tu nem imaginas o que me aconteceu…
_ Calhau! E ainda te atreves a me chamar de benzinho? Pois não estou a tua espera tem mais de hora e tu…
E tome blá-blá-blá! O que podia dizer? Dava mesmo para contar a verdade? Desisti de lutar. Desliguei o telemóvel sem me despedir da ex-namorada. Virei na primeira rua, manobrei no estacionamento da farmácia. Agora, era só arrumar a desculpa, por ter voltado antes da meia hora…
E pegar meu papagaio de volta!
– Marcia Kupstas
Marcia Kupstas (São Paulo, 1957) é descendente de russos e lituanos, povos que sempre foram grandes contadores de histórias. Com 5 anos de idade, quando ainda não era alfabetizada, sentava no colo do pai e ditava livros. Adulta, participou do grêmio da USP (onde se formou em Letras) enviando textos para revistas e concursos. Em 1986, publicou Crescer é perigoso, livro premiado como Revelação no Concurso Mercedes-Benz de Literatura Juvenil. Em 2006, comemorando 20 anos de carreira, mereceu a exposição na Biblioteca Monteiro Lobato e contava com mais de 100 livros publicados, a maioria para jovens. Destaques na carreira: É preciso lutar! (Prêmio Orígenes Lessa/1989); Eles não são anjos como eu (Prêmio Jabuti/2002); Histórias da turma; O clube de beijo; Revolução em mim; O primeiro beijo; Um amigo no escuro; O filho da bruxa (PNBE/2007); Evocação(PNBE/2013).