Ruy Mingas

 

 

 

 

 

 

MANUEL RODRIGUES VAZ


Ruy Mingas, o atleta-cantor, autor do Hino Nacional angolano


Comunicação apresentada no Restaurante O Pote, em Lisboa, no dia 24 de Janeiro de 2024, ilustrada com intervenções musicais do cantor angolano Chalo Correia


De certo modo, eu estive sempre em contraciclo com o Ruy Mingas, que é o objecto desta palestra. Quando ele andava por Lisboa, fui eu para Angola, quando eu regressei a Portugal voltou ele a Angola, para assumir a pasta de Ministro dos Desportos, onde esteve 10 anos, no que terá sido o período mais pujante do desenvolvimento no desporto de Angola.

Cantor, compositor, diplomata, empresário e político, Ruy Alberto Vieira Dias Rodrigues Mingas nasceu na zona da Ingombota, em Luanda, 12 de Maio de 1939, tendo vindo a falecer em Lisboa, no passado dia 4 de Janeiro, após doença prolongada.

Apesar do nosso desencontro habitual, eu estive várias vezes com ele, pois dava-me muito bem com quase todos os seus irmãos, que também foram figuras notáveis da história angolana, nomeadamente o político, cantor e compositor André Mingas Júnior, que era licenciado em Arquitectura e chegou a ser Ministro da Cultura, o comandante policial José “Zé” Rodrigues Mingas, visita regular da minha casa na Praceta José Anchieta, na Vila Clotilde, que viria a ser abatido no 27 de Maio, e especialmente a linguista e investigadora Amélia Mingas, com quem intervim em vários debates e convívios, de que era a principal animadora, defendendo sempre a democratização do MPLA, razão por que viria ser ostracizada, devido às suas ligações à chamada Revolta Activa. Ainda cheguei a conviver com outro irmão, o economista, escritor e político Saídy Mingas, que viria a ser assassinado também no 27 de Maio. Embora os meios oficiais tenham implicado os nitistas pela sua morte, há outra versão, isto é, teria sido abatido pelos golpistas vitoriosos, que não lhe perdoaram ele ter-se afirmado como comunista, reafirmado bem declaradamente no livro que publicou em Janeiro de 77. No último almoço que tive com o André Mingas em Lisboa, em 2002, no falecido restaurante A Trave, com o Troufa Real, eu falei-lhe nisto sobre a morte do irmão. Devo dizer, para que conste, que ele me disse não ser isso novidade para ele. Já alguém lhe tinha dito isso mesmo. O mistério prossegue, mas a verdade é que a apresentação do livro O meu testemunho: A purga do 27 de Maio de 1977 e as suas consequências trágicas, de José Adão Fragoso, que falava sobre o caso, acabou por ser vetada.

Antes de mais, há que realçar: a família Vieira Dias, pela parte da sua mãe, e Mingas, pelo pai, não era de nenhum modo uma família qualquer, era uma família onde se respirava cultura. O Ruy nasceu no meio da elite africana de Luanda e de Cabinda, terra do pai. Os Vieira Dias foram, a vários títulos, gente importante na Luanda a partir de meados do século XX. O Liceu Vieira Dias foi simplesmente o maior cantor e compositor angolano, além de fundador do célebre grupo Ngola Ritmos, que revolucionou a música angolana, e a irmã deste, a famosa Tia Guinhas, teve um papel importante como endireita estesista na Luanda daquela época. Já agora, foi na casa desta senhora, quando já tinha mudado da Ingombota para a zona da Gajajeira, que eu saboreei os primeiros pratos da gastronomia angolana, nomeadamente a moamba de galinha e o célebre calulu de peixe seco, que as sobrinhas faziam a primor.

A talhe de foice, e para reforçar a ideia do papel desta família na cultura angolana, realce-se o facto de o tio do Ruy, Liceu Vieira Dias, ter este nome porque o pai ficou tão contente pela criação do Liceu Salvador Correia, em Luanda, que a homenageou dando o seu nome ao filho.

Ruy Mingas foi essencialmente um músico lutador pela liberdade, cantor feito homem político. Além de atleta medalhado, foi praticante de atletismo nas décadas de 1950 e 1960, tendo competido no salto em altura e 110 m barreiras, no Sport Lisboa e Benfica, sendo recordista no salto em altura em Julho de 1960. Porém, tal como outro angolano seu contemporâneo em Lisboa, Barceló de Carvalho, que conhecemos hoje como Bonga, mas que foi também campeão de atletismo, pelo mesmo clube, na década de 1960, Ruy Mingas seguiria outra musa. No seu caso, podemos mesmo afirmar que houve uma certa inevitabilidade na sua dedicação à música e ao seu envolvimento empenhado na luta independentista e anticolonialista angolana.

Mas, efectivamente, o Ruy Mingas ficará na História pela riqueza da sua obra discográfica, aproveitando os melhores poetas angolanos, como Mário António, Viriato da Cruz, António Jacinto, Manuel Rui e Agostinho Neto, onde se destacam “Cantiga por Luciana”, “Poema da farra”, “Maquesu”, “Muadiaquimi”, “Birin birin”, “Monagambé”, “Adeus à hora da partida” e a muito aclamada “Meninos do Huambo”.

Pertencente a uma família de influentes músicos angolanos, do lado do seu tio, Liceu Vieira Dias, recebeu o ritmo e uma nova maneira de interpretar a música angolana. Durante o seu percurso musical, Ruy Mingas desenvolveu a sua sonoridade própria no âmbito de concretizar o que o seu tio Liceu Vieira Dias sempre lhe pediu para fazer (“cultivar o [seu] ouvido musical”), influenciando assim outro músico angolano, o seu irmão André Mingas Júnior.

Notado desde as suas primeiras atuações, teve participação em um dos programas Zip-Zip em 1969, da RTP, e foi um dos artistas incluídos no primeiro disco do programa com a canção “Ixi Ami”. Posteriormente, acabou gravando já pelo selo da Zip-Zip, que foi tornada uma subeditora da editora discográfica Companhia de Discos de Angola (CDA), ligada à editora Valentim de Carvalho. Em 1970 lança o seu primeiro álbum com o título “Angola”, bastante aclamado e regravado na Espanha, na França (com o título “Africa Negra”) e na Itália. A canção “Maquesu”, pela Zip-Zip, integrou o seu segundo álbum, intitulado “Temas Angolanos”, lançado em 1974. Este continha letras de poemas também de Viriato da Cruz, Mário António, António Jacinto, Onésimo Silveira e Agostinho Neto, e contou com a participação de seu irmão André Mingas Júnior, do percussionista francês Daniel Louis e do pianista brasileiro Marcos Resende, com a produção de Thilo Krasmann.

Como disse no epitáfio Fernando Pereira, o meu amigo Karipande, Ruy Mingas «Tinha uma voz notável e uma sensibilidade para a música que ainda hoje não é fácil encontrar na música de Angola. Depois de ter sido Secretário de Estado da Educação Física e Desportos é nomeado embaixador em Portugal onde acompanha os acordos de Bicesse e o restabelecimento da Paz em Angola em 1992. Regressa a Luanda onde ocupa o cargo de vice-ministro da cultura. Findo esse período de trabalho no executivo entra no projecto da criação da Universidade Lusíada de Angola, em parceria com outro ex-colaborador da SEEFD Paulo Múrias, hoje afamado vinicultor e senhor de um vinho por si criado que é um hino de homenagem ao vinho alentejano, o Vale do Bero. É entretanto eleito para deputado do MPLA na Assembleia Nacional de Angola. Os seus últimos tempos foram, no entanto, penosos, pela degradação continuada da sua saúde.

Mesmo já tendo uma robusta carreira musical, na década de 1970 Ruy Mingas trabalhou como professor de educação física na Escola Preparatória D. António da Costa, em Almada, em Portugal. O período em Lisboa e Almada era também para estudo na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa.

Na Revolução dos Cravos, em Abril de 1974, era o principal nome do corpo diplomático do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) em Portugal, sendo o responsável por iniciar as negociações pela independência angolana com os oficiais do Processo Revolucionário em Curso (PREC). Retornou a Angola para lutar nos combates finais da guerra de independência.

Em 9 de Novembro de 1975 foi lhe dada a tarefa, por Agostinho Neto e Lúcio Lara, de ser o compositor da música Angola Avante!, o Hino Nacional de Angola, a partir da letra de Manuel Rui. Ele e Manuel Rui entregaram o hino em 11 de novembro de 1975, no dia da independência de Angola.

Como disse recentemente o Manuel Rui, “Era necessário fazer o Hino, e com esta missão fomos chamados, eu e o Ruy Mingas, para tratarmos do Hino de Angola independente. É assim que tive a incumbência de tratar da letra e o Rui Mingas da composição. Pensamos em algo que tinha que nos identificar, que tinha que marcar a identidade angolana, o patriotismo de quem sofreu durante muitos anos para ver o país livre do colonialismo português. O hino foi escrito numa circunstância de guerra, de muita pressão e ansiedade. Tivemos dois dias para escrever e musicar o Hino Nacional.”

A primeira versão do hino nacional angolano foi feita pelo conhecido cantor angolano Eduardo Nascimento e pela sua cunhada Ana Maria Mascarenhas, mas, intrigas de última hora, com um boato posto a correr de que aquele cantor tinha sido da PIDE, o que se veio a verificar ser mentira, acabaram por vencer.

Em 2015, foi noticiado que Ruy Mingas pertencia à maçonaria, sendo membro da Loja Cónego Manuel das Neves, da qual foi líder, e que se encontra integrada na Grande Loja Legal de Portugal.

Após deixar a pasta ministerial de Educação Física e Desporto, tornou-se embaixador de Angola em Portugal, servido de 1989 a 1995, desempenhando um papel importantíssimo como principal diplomata angolano nos Acordos de Bicesse.

Foi eleito deputado do Círculo Nacional da Assembleia Nacional na lista do MPLA nas eleições gerais de Angola de 2017, permanecendo em funções até 2021, quando pediu afastamento em razão de seu estado de saúde.

Parafraseando o meu colega e amigo Jorge Eurico, “Vou pedir, reverencialmente, cinquenta angolares e um pano ruim emprestado a António Jacinto para me juntar à dor e à carpideira de Cláudio e Ângela Mingas. Mas antes pedirei permissão ao poeta do Golungo Alto para beber maruvo e diluir a tristeza pela partida de Ruy Mingas nas minhas bebedeiras, que me permitirão consolar, também, os “meninos do Huambo”.

Nesta breve resenha evocativa do Ruy Mingas, não posso deixar de lembrar algo que continua logicamente no reino da ambiguidade: é a posição do clã Mingas acerca da terra natal do seu patriarca, Cabinda. Dizem-me as más-línguas que sobre isso é melhor não falar. Adiante.

De qualquer maneira, a verdade é que o Ruy era o principal acionista do polo universitário de Cabinda da Universidade Lusíada, formada com Paulo Múrias e a “Fundação Minerva – Cultura, Ensino e Investigação Científica”, onde chegou a ser docente universitário do curso de bacharelado em desporto e reitor da Universidade Lusíada de Luanda.

Autor de uma obra intemporal, pela magnitude artística e pertinência textual, verdadeiro ícone da música engajada e arauto da renovação estética da Música Popular Angolana, Ruy Mingas revelou sempre um talento natural para a música, tendência que foi estimulada pela paixão musical, herdada da sua mãe e dos avós, Zé e Guinhas, que tocavam, respectivamente, concertina e Dikanza.

Ter-se engajado na música, com uma marca forte de componente nacionalista, que não deve ser separada do seu processo de criação musical, compreendendo a envolvência com importantes figuras dos movimentos de esquerda portuguesa, tais como, José Afonso, Padre Fanhais, Adriano Correia de Oliveira e Fausto, cuja tomada de consciência política terá sido consequência, directa, da valorização da cultura angolana, em situação colonial, valeu-lhe ter sido preso em 1962, por subversão, e enviado para a Guiné-Bissau, onde permaneceu dezanove meses.

Em situação de reclusão, cantou para os soldados e foi liberto. “Este homem não pode estar preso”, teria dito na altura o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, ali estacionado.

Como salientava Jomo Fortunato no semanário Luanda, do passado dia 8, “No auge da sua juventude, Ruy Mingas viveu as transformações políticas da sua época, consubstanciadas na curiosidade e informação sobre o desenvolvimento da acção dos movimentos de libertação em África, sobretudo nas colónias portuguesas, constituindo, a prática musical, um antídoto contra a nostalgia, ocasionada pelo distanciamento do seu povo, e pelo romantismo que provocava a saudade da sua terra”.

Foi por isso que, na senda da necessidade de afirmação cultural da angolanidade, pela música, surgiu, em 1961, o conjunto “Ngola Kizomba”, uma formação musical da Casa dos Estudantes do Império, que integrava, Ruy Mingas (voz e violão), Augusto Lopes Teixeira (Tutu), no violão, Tomás

Medeiros (percussão), Katiana (voz), Jorge Hurst (Dikanza), e Augusto Heineken (Pestana), na voz.

Citando de novo Jomo Fortunato, “Ruy Mingas cultivou uma estética de criação musical, permeável à fusão de ritmos angolanos, com a expressão das suas mais directas influências. Daí que não seja excessivo afirmar que, Ruy Mingas está registado na história da Música Popular Angolana, como um dos primeiros intérpretes que aproximou, com assinalável êxito, a sua

musicalidade, aos clássicos da literatura angolana. Os encontros de Ruy Mingas, em 1966, com Pedro Osório, Carlos Mendes, Fernando Tordo e Paulo de Carvalho, dos “Sheiks”, no Café “Branco e Negro”, na Avenida de Roma, em Lisboa, e, fundamentalmente, com o acordeonista e baixista, Thilo Krasman, marcaram o início das gravações discográficas com as canções: “Ixi iami” (minha terra), “Minha infância” e a lindíssima “Canção para Luciana”, da qual transcrevemos os versos integrais:

Manhã, no tempo de um cantor/ cansado de esperar, só/ Foi tanto tempo que nasceu/ nas tardes tão vazias/ por onde andei/ Luciana, Luciana/ sorriso de menina dos olhos de mar/ Luciana, Luciana/abraça esta cantiga/ por onde passar/ lá, lá, lá, lá, lá…./ Nasceu na paz de um beija-flor/ em verso/ em voz de amor, já/ Desconta os olhos da manhã/ pedaços de uma vida/ que abriu-se em flor, Luciana/ Luciana (refrão)…

Encerro citando uma alusão feita pela minha amiga Carolina Cerqueira, que é a actual presidente do Parlamento Angolano: “É necessário que os angolanos saibam honrar Ruy Mingas com liberdade e união, justiça, trabalho e paz e Angola no coração”.