Ruminar ou o lirismo que vem do sertão

 

ADELTO GONÇALVES


Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


 I

Quem está acostumado a ler a Bíblia sabe que, no Velho Testamento, em Números, capítulo 22, encontra-se a história em que um anjo aparece para advertir Balaão, filho de Beor, o Petor, senhor das campinas de Moabe, da banda do rio Jordão de Jericó, que, a pedido de Balaque, filho de Zipor, rei dos moabitas, pretendia barrar a passagem dos filhos de Israel, contrariando o que Deus lhe dissera em sonho. E que seguia Balaão em sentido contrário até que o anjo do Senhor fez com que a jumenta sobre a qual ele seguia montado se desviasse do caminho.

Então, Balaão espancou a jumenta para fazê-la tornar ao caminho. E, vendo que o animal não respondia, voltou a espancá-lo com o bordão mais duas vezes. Então, o Senhor abriu a boca da jumenta para questionar Balaão: Que te fiz eu, que me espancaste estas três vezes? Em seguida, a jumenta ainda diria a Balaão: Porventura não sou a tua jumenta, em que cavalgaste desde o tempo que eu fui tua até hoje? Costumei eu alguma vez fazer assim contigo? E ele respondeu: Não. Então o Senhor abriu os olhos de Balaão, e ele viu o anjo do Senhor, que estava no caminho (…).

Mas, a que vêm estas reminiscências? Vêm para lembrar que não é de hoje que os homens de imaginação colocam os animais a falar ou ao menos a manifestar sentimentos que seriam inerentes apenas aos seres humanos, geralmente de lealdade. É o que se pode ver também na novela Asno de ouro em que seu autor, Lucius Apuleio (125d.C-170d.C), filósofo romano nascido em Madaura, na atual Argélia, Norte da África, conta como o personagem Lúcio, na Grécia, ao tomar uma poção por engano na casa de uma mulher versada em artes mágicas é transformado em asno, mas sem que viesse a perder a sua inteligência. Raptado por um bando de salteadores, Lúcio passa por provações, trabalhando como burro de carga, até que volta à condição humana. Na forma de asno, porém, tem a oportunidade de ouvir relatos de homens e mulheres e testemunhar a precariedade da vida humana. Essas aventuras acabam por constituir uma fábula sobre o pecado e a expiação.

II

Não se sabe se foi a partir desses exemplos que o poeta potiguar David de Medeiros Leite (1966) imaginou o seu livro de poemas Ruminar (Rumiar), que saiu em edição bilíngue em 2015 pela editora Sarau das Letras, de Mossoró-RN, e Trilce Editores, de Salamanca, com tradução para o espanhol pelo poeta peruano Alfredo Pérez de Alencart (1962), radicado há muitos anos em Salamanca e professor universitário desde 1987. O Asno de ouro, aliás, é citado por Alencart no prefácio que escreveu para esta obra, para lembrar que igualmente David de Medeiros Leite faz com que animais também falem, adquirindo a forma humana. “Em Ruminar, primeiro quem fala é o gado; depois, o vaqueiro que cuida do rebanho”, observa Alencart.

De fato, o autor apresenta, de forma poética, a relação homem-animal no contexto do sertão nordestino, colocando num primeiro momento o que seria a visão do gado, com suas inquietações que vão desde a preocupação com suas crias, até o questionamento quanto a sua situação de servo ou escravo do ser humano. Em seguida, os poemas mostram a visão do vaqueiro, sua preocupação com as tarefas cotidianas e até mesmo seu apego a superstições comuns ao homem sertanejo. Tudo perpassado por um lirismo transparente e puro, com versos moldados em formas breves e livres.

Um bom exemplo da primeira parte é um dos três poemas que dão título à obra, “Ruminar III”: A gemedeira do carro de boi/ faz o homem,/ de beira da estrada,/ admirar nossa passagem./ O ruído também/ nos serve/ de contrapeso/ ao fardo arrastado./ Entre/ a faina e o ruminar/seguimos aviltando/  vergastadas/ – transferidas, talvez –/ dos que sustentam/ em confusas mãos/ capatázios látegos.

O que encanta nos poemas de David de Medeiros Leite é a maneira como o poeta extrai seiva lírica da matéria mais humilde, como se pode constatar nos versos de “Sujeitos (ruminam)”, peça escrita em memória do poeta popular, cantor e improvisador cearense Antônio Gonçalves da Silva (1909-2002), mais conhecido como Patativa do Assaré. Vale a pena reproduzi-lo por inteiro: Para confidência/ elegi a vaca Estrela./ Com ela, meu desabafo diário/ em regozijos e dissabores./ E como sou compreendido!/ O boi Fubá,/ com cara enfadada,/ fica com despeitos./ Dou de ombros! Também os escuto/ decodificando seus humores,/ desgostos e contemplares./ Sou capaz de decifrar/ o olhar bovino/ desde menino./ E isso aprendi com meu avô,/ que dizia:/ “Nem carece encará-los – eles não gostam –/ só precisa mirá-los/ de soslaio/ e verá/ a profundidade/ que  carregam/ nos silêncios/ e breves mugidos”.

III

Nascido em Mossoró-RN, David de Medeiros Leite, graduado em 1999 pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), mestre (2008) e doutor (2011) em Direito pela Universidade de Salamanca (USAL), na Espanha, é advogado, jurista e gestor com atuação em diversos cargos na administração pública e professor da UERN desde 2004, onde também desenvolve pesquisas, especialmente na área de Direito Público.

Foi pró-reitor de Gestão de Pessoas na UERN e é assessor jurídico da presidência do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte. Foi ainda diretor científico da Fundação de Apoio à Pesquisa no Estado do Rio Grande do Norte (Fapern). Em 2005, em parceria com o escritor Clauder Araújo, criou a editora Sarau das Letras. Além de livros de poemas, tem publicado biografias e livros de crônicas e de História com temas ligados ao Nordeste, em especial à cidade de Mossoró.