Rua dos Douradores

MARIA ESTELA GUEDES


Organizado por dois  especialistas do espólio de Fernando Pessoa, Nuno Ribeiro e Cláudia Souza, saiu na Apenas Livros uma obra de Bernardo Soares, Rua dos Douradores (Lisboa, 2018).

Os dois investigadores deram corpo a este novo livro de Pessoa por terem encontrado no seu espólio o projeto de Rua dos Douradores, de Bernardo Soares, com alinhamento de textos, uns em prosa poética, outros poemas de alto nível, uns inéditos e outros publicados em vida, como os de “Chuva oblíqua”, que Pessoa designa como experiências de Ultra-Sensação. E anota, em fim de página, que Bernardo Soares não é poeta.”Na sua poesia é imperfeito e sem a continuidade que tem na prosa; os seus versos são o lixo da sua prosa, aparas do que se escreve a valer.”

Alguns textos são esboços, sim, mas basta  o livro incluir “Chuva oblíqua ” para o lixo ser ouro e não apenas lavagem amarela de um dourador.

Rua dos Douradores é um belo título. De acordo com Fernando Pessoa, Bernardo Soares trabalhava e morava nessa rua da baixa lisboeta, e ele mesmo, poeta ortónimo, almoçava ali, muitas vezes, num restaurante que tem o seu nome, a Antiga Casa Pessoa. Faz falta a monumental obra de José Paulo Cavalcanti Filho, Fernando Pessoa, uma quase auto-biografia, para agora recordarmos o que nos conta dos movimentos de Pessoa nessa zona. Em todo o caso, o restaurante tem página na Internet, a informar que em 1913 Fernando Pessoa trabalhava ali perto, no primeiro andar do número 44 da Rua dos Fanqueiros, por isso almoçava no restaurante que tem o seu nome. E cita-se a propósito, do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares: “Se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo, por um bilhete para a Rua dos Douradores”.

Parece imagem de mundo mais feliz do que aquele que se imagina na mão, mas a verdade é que o livro Rua dos Douradores, salvo os textos de “Chuva oblíqua”, colhem na morte, seus luxos e sua cerimonialidade a principal inspiração. É de resto com uma marcha fúnebre que remata, a da República Democrática Portuguesa (ocioso reclamar que noutros tempos é que era bom, apesar de tudo o nosso é melhor) e nós terminamos esta nota de leitura de mais uma fascinante e complexa obra de Fernando Pessoa.

Fragmento de poema intitulado “Marcha Fúnebre”

RPRIP

Marcha Fúnebre

Com lixo, dinheiro dos outros, e sangue inocente,

Cercada por assassinos, traidores, ladrões (a salvo)

No seu caixão francês, liberalissimamente,

Π

Em carro puxado por uma burra (a do estado) sem alvo,

 

Passa para além do mundo, em uma visão desconforme,

A República Democrática Portuguesa.

 

O Lenine de capote e lenço,

Afonso anti-Henriques Costa.

 

Mas o Diabo espantou-se: aqui entram bandidos

Até certo ponto e dentro de certo limite.

 

Assassinos, sim, mas com uma certa inteligência.

Ladrões, sim, mas capazes de uma certa bondade.

Agora vocês não trazem quem tivesse tido a decência

De ao menos uma vez ter dito a razão ou verdade.

 

FERNANDO PESSOA

Rua dos Douradores, de Bernardo Soares

Nuno Ribeiro & Cláudia Souza

Apenas Livros, Lisboa, 2018