Quinta do Espinheiro, 1 de Novº 64. Meu caro amigo O autor da natureza sempre avaro em fazer nascer homens grandes, extraordinários, homens do século, foi pródigo nesta variedade em 1817, porque nasceu neste ano, e no dia de hoje, o grande José Maria Rosa de Carvalho, e no dia de amanhã o grande José Maria de Abreu (1). O primeiro nasceu para extermínio de todo o bicho vivo, e o segundo para derramar até nos cantinhos de Portugal a muita instrução que talvez tenha. Faço hoje 47 anos de idade e não me troco por alguns que tendo apenas 41 são os pais e as mães das dores de cabeça, de costas, e das cólicas flatulentas, nervosas, de chumbo, de ferro, de cobre, de bronze, e talvez das de aço. Tenho saúde, e por isso os 47 não fazem em mim grande peso, e tanto isto é assim que bem vê a frescata com que o escrevo. Recebi ontem as suas memórias; parece-me que o A. rozianus (2) está muito bem desenhado. Agradeço-lhes. O Manuel Paulino também as recebeu. Foi esquecimento o meu amigo não mandar a sua lista de mamíferos e répteis, ao Júlio Henriques; será bom que lhe mande estas. Ele está aqui, veio ao 6º ano. Estou duvidoso sobre se o meu amigo recebeu a minha última carta. Se a recebeu e não respondeu está desculpado pelos seus muitos afazeres. É sempre agradável a descoberta dum animal que ainda não há no museu. O sapo cultripes está em meu poder, como lhe disse, porém duvido que a chamada rã que ele tinha abraçada pela cintura seja a fêmea dele. Se eu descobrir mais na cópula, fico descansado. Tenho pedido a muita gente se mos descobre, porém a chuva é para isto um grande obstáculo. O Manuel dos ratos não tem ido a eles por causa do tempo, tem ido apenas 4 vezes, armar e levantar as ratoeiras, trouxe a última vez uns 8 da Quinta da Geria, que eu conservo, e parecem-me participam do campestris e do musculus, isto é, são parecidos com ambas estas espécies. Verá quando eles forem. O Manuel Paulino tenciona ir aí antes do Natal, já tinha ido se não fosse o mau tempo, ou antes o péssimo estado em que dizem estar o caminho de ferro do nosso Portugal. Os arvicolas têm os costumes das toupeiras giram quando está bom tempo e concentram-se quando está mau. Tenho feito esta observação aqui na Quinta. Sem o tempo melhorar, nada se pode fazer, o que bem me custa; porém se assim continuar, assim mesmo faremos por os caçar. No primeiro dia bom que vier vai o Manuel à serra de Ilhastro (3) procurar as Nitelas (4). Observei este ano os Tritões na cópula. Vi os girinos deles, dois meses depois; e notei que estavam no mesmo desenvolvimento dos vindos do Buçaco, daquela espécie que queremos apanhar. Os do Buçaco vieram no fim de Janeiro, tinham portanto 2 meses de idade; logo nasceram em Dezembro. Será este o mês de encontrarem na água os mais deles. Se o Manuel quisesse ir agora ou proximamente ao Buçaco, seria talvez proveitoso, e fazer lá outra visita no mês de Dezembro. Veremos. Relação das cobras do Manuel Paulino, Natrix viperina 3 muito pouco diferentes entre si. Natrix torquata espécie, e uma linda variedade sem coleira, que lhe dei, julgando ser a coelopeltis insignitus = espécie (5). Scalaris espécie, e duas variedades novas em idade, esbranquiçadas, e com riscas largas transversais, escuras. Coelopeltis espécie, e uma variedade que lá tem das que levou para aí. Nada mais tem o homem. A vinda do meu amigo aqui fez com que eu possa dizer alguma coisa relativamente a cobras. Estou desejoso de conhecer a girondica (6), que não sei se aqui aparece. Apanhei outro sapito da espécie que levou que eu julgo ser nova. Também apanhei dos que julgo serem variedade do sapo ordinário, e eu lembro-me se será o mesmo sapo vulgar novo em idade. O papel não dá para mais. Escreva a J.M.R. de Carvalho
(1) Catedrático da Universidade de Coimbra que era ministro da Instrução. (2) Arvicola rozianus Bocage, 1864 (Microtus agrestis). O desenhador é Felix de Brito Capello. (3) Não conhecemos a serra de Ilhastro. (4) As Nitela são insectos (Hymenoptera). (5) Coelopeltis insignitus - Malpolon m. monspessulanus - cobra rateira. (6) Coronella girondica.
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