Yêda vai sempre a um escondido sebo da cidade. Desses recantos apartados da enorme correria e que a meninada de hoje bem que poderia chamá-lo: “tudo de bom”. Mas nem calculam que ele exista. Era um bazar de incríveis sapiências, acolhedora luz e um cheiro impregnante de impresso exalando por colunas de livros empilhados, barrocas esculturas de papel. No sebo do Rufino encontravam-se respeitáveis dicionários em dezenas de tomos, que poucos editores de agora ousariam pôr em prelo. Raros alfarrábios por séculos vincados, coleções de inventos em tipografia artesanal, cientistas laureados, iluminuras e amores quixotescos em foscas lombadas, primeiras edições com singelas dedicatórias, brochuras de acórdãos e tratados, cartilhas esquecidas pelo dono, opúsculos de anotações de viagens ao coração das selvas, feitas num tempo em que o indígena era só uma flor, boa e desconhecida.
Era um memorial lânguido e nostálgico, ressuscitando a era em que o livro fora o feixe afortunado dos instintos e razão de tudo. Rufino cumpria o rito de esperar o visitante à velha mesa, postura e gestos de bibliófilo paciente, feições de uma rigidez ornada pelo chapéu em desalinho, o cachimbo pensativo pendurado à boca e o teor ambíguo do paletó sulcado, comprido sem exagero, parece que encarnando um jogador de cartas do pintor Cézanne. A estratégia era indagar por um livro com interesse falsamente desinteressado, quiçá distraído. Era a senha convicta entre as partes, assegurando o livreiro de que a transferência de dono não consignaria usurpação, tampouco que iria esquecê-lo numa estante empoeirada, ou devolvê-lo friamente a outro sebo. Sob suspeita, Rufino apossava-se do livro, discorria sobre a importância ética e cultural da preciosidade, elogiava o fio têxtil que cosia suas dobras, o esmero da capa, acolhia-o como quem afaga uma criança perdida dos pais e, por fim, sentenciava: “Esse livro, decididamente, não está à venda”.
Este, de poemas? – perguntou. Escuta esta estrofe, e recitou pausadamente, em sotaque italiano: “É sempre a maior / a mais funda, / a mais longa viagem: / eu, diante de mim – miragem.” Fez pausa. Não tem preço, sublinhou, é revelação alheia a qualquer negócio, funda intimidade de alguém, talvez a minha! Yêda impregnou-se de emoção. Argumentou: compreenda, senhor, este livro é meu, fui eu que o escrevera, “Caminhos de Mim”! Rufino encarou-a, braços prostrados, como quem cumpriria à mais fecunda das missões: em oferenda, entendeu-o à legítima dona.
Ela soprou-me a história desta crônica. Dias após, veio-me o livro por correio. Mantenho-o junto às suas outras crias, perfiladas, como irmãs indóceis na fotografia. Decerto fazem gangorras, brincando com o segredo das palavras: “Secreta Ária”, “A Alquimia dos Nós”, “Tempo de Semear”, “O Peixenauta”, “Baco e Anas Brasileiras... “Caminhos de Mim”. Rufino se foi; a escritora também, com claros cabelos e olhos entreabertos. Gestava um livro em quinto mês, rapa de seu tacho. Canta pra ele, do lugar que nos contempla: “te sinto agora / tanto e sempre / pássaro duplo, / coração batendo, / pulsando compassado / no meu ventre”.
Ofertou-me estas lembranças e um escrito delicado na página de rosto: “Companheiro culpado pelo quinhão da saudade que me acelera o peito. Dou a ti este livro trazido dum bazar de sonhos. Que o sebo sê bom”. Inda hoje se visitam, Yêda e Rufino, na livraria que mudou de dono. Fazem-se companhia jogando cartas à mesa de Cézanne. De vez em quando deparam com um livro que ela escrevera, e alguém desprezou. Cumprindo o fado de poeta, despacha-o a algum amigo, sorrateiramente, em noites vagarosas, pelas asas dum correio. (Yêda Schmaltz, goiana, 1942-2003).
Romildo Sant’Anna, livre-docente, jornalista e escritor.
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