Respiramos o horizonte embaçado das guimbas e bitucas. Carteiras de cigarros expõem fumantes com moléstias vasculares, cardíacas, o enfisema, a agonia asmática e o pulmão defumado, o câncer em tenebrosas metástases, membros amputados, necroses e dentes podres, a impotência, o bebê entubado, o natimorto da gestante viciada e até o roedor estatelado por efeitos do arsênico inalado por fumantes. O Ministério da Saúde adverte; seus mandantes nada fazem: a fome tributária urra mais que a etiqueta. Hipócritas da virtude, escondem-se por detrás de um fingido respeito à liberdade e livre-arbítrio. Na outra ponta, a fabricante de cigarros encarta em seus maços singular aviso, dissimulando a vontade em difundir os malefícios de fumar. Ah, cinzenta plenitude dos cinismos! Se essa peste é tão a causa da ruína, por que não a incriminam ou cessam de fabricá-la?
Em eras remotas, o cigarro tinha o dom de afugentar os maus espíritos. Em sagradas pajelanças, guerreiros recebiam lufadas de fumo exortando a força e a coragem. Fumar simbolizava comunhão, o cachimbo da paz, pórtico de enlevo para os céus, nos luares de todos os sertões. Curandeiros presidiam cultos utilizando-se do tabaco, e o fumo e seu incenso irmanavam cânticos e danças em litúrgicas bênçãos. Exaltando seus vigores curativos, Manuel da Nóbrega escreveu que Deus remediou nossas dificuldades “com uma erva cujo fumo muito ajuda à digestão e a outros males corporais, e a purgar a fleuma do estômago”. Os tempos transitaram no infinito, na toada lenta com que fomos habitar cidades. Num quarto de Lisboa, defronte da tabacaria, Fernando Pessoa celebrou a evasão das atribulações modernas: “Saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. Sigo o fumo como uma rota própria, e gozo, num momento sensitivo e competente, a libertação de todas as especulações e a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto”. Em solidão, deita-se para trás na cadeira e sorve seu cigarro, pensativamente: “...se eu casasse com a filha da minha lavadeira, talvez fosse feliz!”.
Há poucos decênios, o cigarro era o fetiche inofensivo, caramelo de hortelã. Era a atmosfera fumarenta e atopetada do jazz, conjurando a sorte e futucando as emoções. Fumar seria então um hábito elegante. Piteiras de madrepérola se faziam sedutoras e grã-finas, como as noites do cinema. Astros e estrelas degustavam seu aroma incrementando galanteio e charme às fábulas vividas. Um balé sensual de fumaça enrodilhava a mente e, no devaneio encantador dos enredos, sonhamos... tornamo-nos agora.
Justificando o fim, premeditando os meios, a ganância lucrativa das indústrias sugou essa doidice. Incrementou no cigarro mil poções ardilosas, decretando o aprisionamento físico e moral, escravizando criaturas a seu jugo devasso. Na morbidez e estalão do sistema vigente, o tabagismo é bem-aventurado, conveniente tentáculo da dominação. Gera uma corrente de colocações que entrelaçam ofícios dessemelhantes como o de lavradores, farmacêuticos, papa-defuntos, e do escritor das sessenta e seis tragadas desta crônica. Movimenta bilhões na mercantilização do fumo e seu contentamento fugaz. Governos se deleitam, gananciosos vampiros da arrecadação. Ele fumará, e vós, enfeitiçados, fumáveis. Na boléia dos anos, o misterioso cigarro, o fascinante cigarro, o romântico cigarro, esse inimigo nº 1 encarna a bagana da ironia, flâmula que tremula em nosso tempo. Submissos, nos comprazemos, azedos de nicotina, rindo da maldição, esgoelando vivas nos estádios. |