ROMILDO
SANT'ANNA


Violinha de Cocho

.
a Paulo Freire e Roberto Corrêa
.

O alaudista e pesquisador Stephen Stubbs, conferenciando na Universidade de Montreal sobre a guitarra barroca, apresentou sua pequena raridade à platéia. Era um instrumento acinturado – confidenciou-me um interlocutor brasileiro –, com cinco ordens de cordas duplas, afinação em “cebolão”, e de cujo rasqueado floreava o som prolongado e estridente da viola caipira. Explicou o músico alemão tratar-se de um instrumento raro, desses reconstruídos por “luthiers” especialíssimos, com base em antigos tratados e contatos com certo instrumento preservado entre as camadas populares da América do Sul. Nas cortes européias do século 17, a guitarra barroca era decorada com filigranas de ouro e ornatos de nácar e marfim, rendas arábicas e marchetarias. No Brasil, moldada pela luteria rudimentar de ferramentas toscas, aquela forma antiquada da guitarra não manteve as ornamentações e enfeites preciosos dos tempos aristocráticos. Mas ganhou festeiras fitas coloridas ao braço, homenageando São João e São Gonçalo.

Nossa viola vem dos tempos das justas cavaleirescas, nos cafundós medievais. Deriva-se do “ud” árabe (o alaúde). Esparramou-se pelos cultivos populares, cruzou mares e se alastrou no coração do povo. O “Libro de Música de Vihuela de Mano” de Luís Milan, publicado em Valência, em 1535, já apresentava letras em português arcaico com cifras musicais. Diz a quadrinha de tino conquistador lusitano: “biola s'eu for p'ra guerra / hei-de lebar comigo; / bais ser a minha defesa / p'ra quando eu s'tiver em p'rigo”. Era tão querida que, nas ilustrações da “Grammatica da Lingua Portuguesa, com os Mandamentos da Santa Madre Igreja” (1539), assim como o “g” desenhava um gato, o “v” esboçava os contornos da viola.

Do dedilhado cortês ao rasqueado popular, as cordas dessa música vieram zunindo no vento que empurrou as primeiras caravelas. Trouxeram o som que se firmou no coração mestiço brasileiro. Tomou formas diferentes em cada região do país, adaptando-se às colorações etnoculturais. Na região caipira, firmou-se no molde artesanal da cintura fina, e no tinido sentido da graça chã. Com seu ponteado feminino, emoldura letras de cururus, siriris, cateretês, recortados mineiros e toadas em geral. Plange no peito de cantadores, alembrando idealizadas paixões, amores perdidos, crenças e saberes, alentos e desventuras, enfim, a identidade da gesta mais sentida do Brasil.

Acabo de ganhar o presente de uma viola-de-cocho pantaneira. Imponente em sua humildade, esculpe o passado mais primitivo de músicos artesãos, e realiza o milagre do pertencimento cultural que só a tradição possibilita. O misterioso instrumento, no abraço de caboclos, morenos e cafuzos, é feito do tronco inteiriço de árvores aquáticas, esculpido a machado, como o sarã e a ximbuva. Cortadas em lua minguante, são madeiras leves, resistentes e sonoras. Em artesania incipiente, faz-se um cocho escavado na madeira. O tampo, quase sempre sem orifício pra não entrar bicho, é feito da raiz de figueira, e colado com o ingrediente que medra do sambaré – uma orquídea que se instala em espécies de palmeiras –, ou com o preparo feito do cozimento da bexiga de piranhas. O cavalete, pestana e cravelhas são de cedro, mogno ou aroeira. Com apenas três trastos feitos de barbante encerado ou embira retorcida, que dão o “sintoma sonoro” meio chocho à violinha, o encordoamento é feito das tripas de macacos, línguas de tamanduás ou nervos de cobras. Hoje em dia, usa-se a linha de pesca, que não esquece a herança ancestral da sonoridade sorumbática e taciturna dos indígenas. É essa viola pantaneira que acompanha os sabores e dissabores da existência, no ciclo das cheias e vazantes, no ritmo ermo de um mundo iniciático, onde inda se pode ouvir o vozeirio harmônico da natureza. Acompanha a toada da coleta de alimentos e fazeção da farinha; faz parte dos ritos, procissões e oferendas; é conviva de honra na comunhão dos bailes e assanhados siriris. Realiza a litania das interrogações irrespondidas, dos sentimentos e pressentimentos do mundo. A violinha de cocho vem da mais funda decantação da arte nascida da terra. Enfeixa em sua magrela estatura a seiva dos afluentes raciais dum oceano chamado Brasil. Alheia às etiquetas do clássico ou popular, flutua no rio do tempo, derramando os singelos acordes de ser e existir num país. Humilde, imita os pormenores encantados da beleza. Grandiosa, absoluta e mansamente devagar.

.
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.