VIOLA E VIOLEIROS


Menciono passagens de algumas conversas com Aílton Estulano Vieira em 1995, e que ilustram meu livro A Moda É Viola - Ensaio do Cantar Caipira. Aílton é filho de Rubens Vieira Marques (1926-2001), o Vieira, poeta, instrumentista e cantor. Vieira, com o irmão Vieirinha (Rubião Vieira, 1928-1990), fizeram sucesso nas rádios, tevês e em shows, por mais de 50 anos. Em 1950, acompanharam Getúlio Vargas nos comícios por todo o Brasil, que o elegeram Presidente da República. Vieira e Vieirinha eram filhos de imigrante português e mãe cabocla, gente da roça, família que fabricava violas com a madeira de caixas de bacalhau, importadas de Lisboa. Como principal ferramenta, usava a lâmina de canivete. Eram conhecidos como Os Reis do Catira - uma dança de origem ameríndia, sem "esfregação", e que, segundo o pai, parecia com as danças de aldeia em Portugal. Pertencem à família Liu e Leu, e Zico e Zeca, primos de Vieira e Vieirinha, e que ainda fazem sucesso. Dou-lhe texto abaixo, reescrito ou editado por mim, e ao qual nada se acrescentou, como essência das palavras de Aílton. Tire suas conclusões.

"A viola representa alegria e tristeza ao mesmo tempo. Alegria por eu ter conseguido aprender a tocá-la, a viver no meio dela, e nosso pai ter conseguido criar a gente por meio dela. E tristeza, pelas dificuldades que trouxe pra nossa casa. Mas que é um instrumento muito bonito, isto é. Mas trouxe tristeza, repito. Tristeza porque a viola não era reconhecida, talvez até menos do que é hoje. Quando o nosso pai cantava, viajando por esse Brasil; na época em que chegou a gravar mais de setenta discos-elepês, ninguém dava valor.

E acho que ainda não dá. Quando o pai cantava com o tio, o Vieirinha, as pessoas mais ricas, ou remediadas, e que tinham condições, tinham vergonha de admitir que gostavam da viola, de ser caipira, de cantar moda caipira. Então não compravam os discos... Vendiam-se poucos discos naquela época. E pagavam um quase um nada por uma apresentação. Desprezavam a gente até no Grupo Escolar aqui da cidade... Hoje eu acho que é completamente diferente. Filho de violeiro, ham!

A gente, minha mãe, meu irmão... a gente sempre viveu sem dinheiro e no meio de preconceito. A gente não teve uma infância muito boa, não teve muita fartura lá em casa. Esse é mais um lado da tristeza que a viola trouxe. Digo isso não por mim mesmo, mas pelo nosso pai, que já está velho e ainda precisa trabalhar aqui na loja, por necessidade. Ele não pôde dar uma infância gostosa pra gente, uma educação boa, propiciando à família o que achava que seria de bom.

Trabalhava muito, lutando, viajando de carro, de trem, jardineira e caminhão por esse Brasil, de ponta a ponta. Se expondo de tudo quanto é modo, campeando serviço. Era em praça pública, era em circo, era em quermesse, era em rádio, era em fazenda... era onde fosse chamado, ao preço de uns trocados. Eu e meu irmão, com saudade do pai; minha mãe, sentindo falta dele, se mordendo de ciúmes; e todos nós, dias e dias separados. O certo é que a vida ficou diferente depois que nosso pai e nossa mãe pegaram os trens da casa, no sítio, e foram viver na cidade, para facilitar os compromissos de cantorias do pai.

A viola mudou pra cidade, onde nunca foi o seu lugar.

Nossa vida é e sempre foi assim, de muita raça. Mas a viola deu alegria também, no sentido de hoje a gente ver o pai, com setenta anos, benquisto, cheio de si, reconhecido na televisão, com tese estudada na Universidade... todo mundo conhece, e foi através da viola mesmo, e do catira, que o pai propiciou felicidade, com o Vieirinha, a tanta e tanta gente.

Essa fama do nosso pai até abre as portas para mim. Mas às vezes atrapalha.

Em algumas ocasiões, quando a gente vai procurar emprego em São Paulo e, quando ficam sabendo que sou filho do Vieira, dizem: -Você não precisa de emprego, você é filho do Vieira... é rico. Eles acham que ser reconhecido no Brasil, ser artista como o nosso pai foi e ainda é, é ser rico, é ter feito fartura a vida inteira. Que confusão eles fazem; como desconhecem a viola e os violeiros." A "Musicais Vieira" fechou em 2001.

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Romildo Sant'Anna, escritor, prêmio 'Casa das Américas' (Havana), é curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' - São José do Rio Preto, Brasil.

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