Roman Jakobson, se não me engano num ensaio sobre "Lingüística e Poética" lembra que, na discussão da poesia, discordar quase sempre é melhor que a concordância; numa reunião interna de políticos, concordar traduz querência coletiva no tumulto dos contrariados. Mas, quando grupos políticos disputam entre si, coligando interesses e transações, a discórdia e o calor da paixão dissipam a poesia inata das pessoas, e o camarada se desveste da delicadeza. Avulta-se cruel, leviano, malfeitor. É vencer ou vencer, sem um possível talvez, fermentando um balde pulsante de indiscrições e furor. Engendra-se na quietude o olho do furacão. Quem assiste a comícios, debates ou acompanha programas eleitorais, sabe bem do que estou falando.
Conheço de perto a todos que concorrem a prefeito da cidade. Em papel transparente e sobrepostos, formariam interessante desenho de uma geografia social. Procuro entendê-los no dia-a-dia, sem artifícios de marketing e máscaras de candidatos. E, principalmente, sem os frios números e legendas partidárias que os identificam, como num ringue ou numa rinha. Quatro serão vencidos; só um pode ganhar: será o Nicolau, a Regina, o Mané, o Daniel, o Edinho?
Conheci Regina em reuniões da Faculdade. É diligente, efusiva, arrodeada de simpatizantes. Fluente no gesto e na palavra, não transige com o que almeja. Entre suas tantas rubricas, um atuar intermitente. Uma franja lhe expande no rosto o sorriso, a lhe esboçar marcados traços de docilidade e inteligência. Daniel se ergueu da caldeira de um sindicato. Nessa temperança enverga a pesada carranca da labuta meio agônica, meio trágica, meio atônita. Laborioso e com o linguajar dizendo que se formou na escola da vida, demonstra o orgulho sem empáfia do que já fez aos companheiros de lida: consultórios saúde, a pequena e acolhedora piscina, um parque de lazer à criançada e uma sede sindical tingida com as cores da nação. O Manoel Antunes é o Mané indissoluto da esplanada acolhedora. Assiste da geral aos jogos do Rio Preto, atento à contenda dos chutes e à camaradagem dos amigos. Enxerga o jogo da vida no tino dos olhos, como quem reconhece o destinatário pelo peso da carta. Enraizado no povo, no que ele tem de grave e ambíguo, deu nomes santificados aos bairros e, numa conjunção de formas tropicais, assentou um deus romano no panteão das divindades gregas, e denominou "Júpiter Olímpico" a seu ginásio de esportes. Tudo por lhe parecer pomposo, honesto e bem-sonante.
Conheci Edinho Araújo na santa fé de há muitos anos, como jovem prefeito, político inda em botão. Acolheu Nélson Pereira dos Santos na melhor pousada que pôde, pois se realizava o filme sobre a estrada da vida. E, nessa trilha empoeirada, elegeu-se às câmaras de São Paulo e Brasília, percorreu corredores intrincados do poder, mas viu-se atraído às águas das fontes brotadas na sua região. É moderno, a pá e a terra, fecundidade e adorno. Abraça com timidez, transita com elegância e, respondendo baixinho, não esconde enigmático afeto. Vejo Nicolau desde criança, descalço entre mangueiras, estilingue e pontaria. Expressa-se em pulsações, no entreato das idéias. Sorriso orgânico engendrado em alegrias e indignações, professor esclarecido, duque dos salões paroquiais, verte-se à comunidade como quem transita nos teatros de família.
Eis o painel, o farnel dos sonhos, a cortina que não fecha. Mandatos se exaurem na premeditada finitude; os personagens desse drama nunca se desligarão no coração dos tempos. Vencedor? Este apenas se desvencilhou do complicado novelo dos vencidos, nada mais. Distinguiu-se no horizonte transitório. Levará consigo a dívida de que nunca existira se não fora os perdedores. A ele, a incrível solidão da sorte, no concerto dos interesseiros, na opressão opaca dos bajuladores. Rojões vão soletrar "vitória" e o galardão se dissipará em nuvens. Tudo peça dum mesmo tabuleiro: viventes nos giros do tempo, esquizofrenia duma mesma e fugidia madrugada. Ao vencedor, as batatas - escrevera Machado de Assis, à luz da melancolia. E a cidade seguirá nas veredas de seus riachos, ricaços, cantadores e catadores de ilusões. Ave, povo, soberano povo, os que vão perder o saúdam!
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