JANELAS ABERTAS Nº 3



A amiga falou que adiasse a crônica, pois que não me tem achado bem ultimamente. Respondi que são bebedeiras de dezembro, no entreato do Natal e Ano Novo. Sinais de uma inexplicável preguiça de ser, que acontece com muita gente. E, como diz aquela música do Belchior, “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”. Por que deixar de exprimir o inevitável, desde que este não seja o nosso próprio fim, prorrogado no santo de todo dia? No compasso de Manuel Bandeira, entra ano, sai ano, é ir-se dançando o argentino tango, na tela cigana de um filme...

Mudemos de assunto pra – quem sabe? – ...dar no mesmo. O melhor dos melhores filmes de Hitchcock é “Janela Indiscreta” (Rear Window, 1954). É fita de suspense, e nos coloca defronte do humor negro e um certo horror. Escancarada para o mundo cenográfico de um pardieiro (os fundos de vários edifícios se entreolham), tornamo-nos, através dos olhos do fotógrafo Jeff (James Stewart), privilegiados espectadores da vida alheia, bisbilhoteiros insaciáveis e excitados com a comédia humana. De quebra, herdamos a companhia de Grace Kelly que, convenhamos, não é pouco: ela é a dádiva, a Vênus deslumbrante e arrebatadora do “voyeurismo”, curiosidade mórbida ou nosso deliciante fuxico interior. Chega-nos também de presente uma enfermeira, a apalpar nossa doença e aplacar a nossa dor. E, pelas frestas, vemos retalhos de vidas, fragmentados pela presença e ausência dos moradores, pela luz e sombra dos apartamentos, no êxodo ermo das entreparedes. Montamos um ilusório quebra-cabeças do “reality show” dos corações partidos, e cujas peças encaixam incontáveis amarguras. São mosaicos que se eternizam nos cubículos íntimos da existência: as casas, os interiores de nossos tapumes dentro do mundo. Pelos olhos do fotógrafo Jeff, no charme de Hitchcock, observamos os dramas dos vizinhos; somos um ilusório deus e, como tal, oniscientes, onipresentes e sabedores do pouco de quase tudo.

O olhar ritual pela janela é mito. Mais que a extraordinária satisfação de expandir-se, libertando o espírito de seu aprisionamento interior, é o escape por meio do qual se vêem, nos outros, os pecados e enganos cometidos, e que a gente mesmo os poderia cometer. E assim, saímos de nós pra retornamos a nós, no ato de bisbilhotar a vida alheia. Reflete nossa curiosidade mórbida pelo incidente desastroso, pelo marco que desabou, pelos murmúrios sufocados nos corredores, pelo intestino dos casamentos desandados, pelos gritos em transe chegados de algum lugar. Somos olhos indiscretos de uma câmera, os “papparazzi” a comer do fracasso alheio, e a retratar príncipes e princesas condoídos, rememorando o semblante de há vinte rugas atrás. Conferimos ansiosamente o que se passa no território alheio, evitando buscar em nós a partícula semelhante, em nossa vida. Como no filme de Hitchcock, comportamo-nos como o músico que não encontra a nota essencial da canção que é só dele; sentimo-nos a dançarina virtuosa e sorridente, mas melancólica e sozinha; o marido que esquarteja a esposa, despachando-a num baú, pra lugar desconhecido. Recolhidos no lado de dentro, sentimo-nos o desamado que, todo o santo dia, prepara o jantar à luz de velas, mas é predestinado a beber do vinho da ausência, imaginária ou real. No entrepano dos apartamentos, que expressam murmúrios e gritos escondidos, acaso não seria esse o retrato de nossa casa interior? Eis um dos enigmas reveladores, o novelo sem pontas, no torpor charmoso e estético das janelas indiscretas.

Janelas são quadraturas abrindo-se para o não-lugar além de nós, na consciência de falta, no desejo insaciado, na angústia de existir, no teatro de franzir os lábios e se dizer “bom dia”. É a interação com o “lá fora” forasteiro, e sua entrada no “aqui dentro” de uma peça tragicômica. De outra janela – quem sabe? – um deus nos observa e, com mágica máquina de tirar retratos, enquadra o fotógrafo James Stewart, ou mesmo Alfred Hitchcock em pessoa, e seus angustiados vizinhos, e até a nós outros, aqui, na comédia do mundo. Janelas expressam o desejo de mudança de estado interior, no sedentário de outra cenografia: a vida como ela é, e o enfadonho burburinho. E, se é assim, não podendo ser outra coisa, e se no fundo sabemos disto de antemão, por que desejar ao vizinho um Feliz Ano Novo? Tal resposta, mágica e candente, tem domicílio num lugar misterioso e aceso do coração, e, mesmo assim, quando passeamos no recanto silencioso que denominamos Fé. Ou na diabrura de um bolero, no cambalacho de um tango, girando e girando em torno de si, no contorcionismo da vida. Vida, vida, parece que não tem fim.

__________

Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, recebeu o Prêmio ‘Casa de las Américas” – Havana. É curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’ – São José do Rio Preto –SP - Brasil

PORTUGAL