O espaço utilitário representado é a mais purificada extensão do ser. Assim como os agrupamentos humanos, as concepções espaciais feitas por engenheiros e arquitetos, e mormente por nós, a esmo, são apreensões do universo e simbolizam a edificação de um mundo dentro do mundo. Bachelard escreveu que espaços de infinitude concebidos pelo homem projetam nossa imensidão interior. Foi reparando nas linhas de fuga, instaurados por suaves traços em diagonal de telhados, que me afeiçoei do artista José Gonçalves Toscano. Tais linhas, em duas águas funcionais, com uma extremidade apontando o radical da terra, outra, o misterioso firmamento, sintetizam acolhimento e proteção (o telhado em si) e, no singelo e abstrato traço de desenho apontando o infinito, a própria humanidade em suas dimensões corpórea e espiritual. Com estes atributos, o artista, alicerçado na imensidão de sua verve, comungava com clientes e espaços urbanos. Produziu idealizadas e majestosas formas que aí estão e, independente de o engenheiro ter-se ido, ficaram.
Conheci Toscano inda pequeno. Ao reencontrá-lo, nos idos de 68, não o associei ao menino da loja de tecidos. Na ebulição daquela época, uma canção da tropicália ensinava que bumba-meu-boi e rock-'n'-roll eram passos da mesma dança. Enquanto a repressão metia pua nos focos de libertação, o Arena e o Oficina estendiam metáforas históricas em forma de vanguarda; a Poesia Concreta exortava a sonoridade das letras no espaço e Glauber Rocha era aclamado nos Cahiers du Cinéma . Toscano, apeado de Natal, Rio Grande do Norte, exprimia o suco fervoroso desse tempo. De um lado, a treva que elegantemente recusava; doutro, a bossa que reluzia na prancheta. Seus desenhos eram música no espaço, um pouco de blues, um tanto Beatles, Caetano e Vandré. E, sal da terra de Câmara Cascudo, outro tanto de baião, o visgo do maracatu, o aboio solitário e empoeirado, o martelo-agalopado e Patativa do Assaré.
A arte aplicada à ciência de Toscano se fez canção, na dureza do espaço. Formou-se na USP de São Carlos, onde lecionou. Voltou a Rio Preto. Estabeleceu atelier de engenharia e fez dele um estúdio refinado e brasileiramente moderno. Com acuidade técnica, social e estética, projetou e construiu impressionantes 800 mil metros quadrados em várias partes do país. Era um camarada sonhador, condescendente e generoso. Tinha o olhar de quem vê docemente, e se estende no outro. Recusou, em linha direta, a propagação de escolas arquitetônicas. Instintivo, absorveu o estilo clássico e fez dele a sua grife, transfiguração, cultura e ideologia. Seus projetos mesclavam a rigidez de complicados cálculos, a geometria dos ângulos retos, sóbrios, dóricos, em primitivo e sensual desenho, a compreensão etnológica do que seja a casa, como instância elementar de convívio, tudo em acordo ético e acolhedor, e em formas de beleza que o identificaram como artista no tempo e cidadão no mundo.
Traduzindo o paradoxo de existir, Fernando Pessoa escreveu que “a alma é grande e a vida pequena.” Recordo Toscano com leve e delicada saudade. Construtor que erigiu formas em cores, inda posso auscultá-lo no ritmo de seus engenhos de concreto, vergalhões, imbuias e granitos. Entrevê-lo na silhueta de inumeráveis edifícios, graciosos como totens emoldurados de céu. Enxergá-lo em vigas, colunas e telhados que, de tão leves, parecem flutuar. E senti-lo pulsante, criador, acenando gestos de imensidão, cimentando acordes de simplicidade, em requintada partitura musical: sua vida de homem e artista. (José Gonçalves Toscano, Natal, 1943 – Rio Preto, 2000). |