Há uma série de vocábulos cuja sonoridade evoca ruídos, imagens, situações vividas. São onomatopéias. Imitando e, sem convenções, significando o que imitam do mesmo modo que ícones e gestos , constituem elementar meio de comunicação entre os humanos. Splash, um líquido se expandindo em brilhos pelo espaço, é algo que ouvimos ou vemos batendo n’água e, eventualmente, jorrando nalguma coisa ou em alguém. Uns riem, arrefecidos pelo elã juvenil de rir à toa, surfando à flor da primavera, mergulhando em piscinas. Outros choram, no desprazer de se sentirem despejados, atraiçoados por onda repentina, no desencanto e desconcerto íntimo do ridículo.
No filme adocicado, splash é o esvoaçar ondulante da delícia, uma sereia sedutora, cantante, contente e bela como todas as sereias, e pela qual um jovem se encanta. Noutra sessão-matinê, não passava dum sonho tranqüilo, encontro de bocas molhadas, escancaradas, no desajeito adolescente da ventura. Porém, sorrateira, vai a esquadra da existência navegando em seus conformes e, aos poucos, os mares se tingem de melancolia. Manuel Bandeira, quase sempre libertino e depressivo, constata numa Nova (e tão velha) Poética: o orvalho de antigamente a poesia alimentava “as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade”. Agora, um splash é obra da descompostura, o efeito abjeto dos azares. Emoldura o escritor taciturno, na nostalgia do nada, com seus dizeres crestados de angústia: “sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama: é a vida”. Vida sem metro, sem rima, deslustre de orfandade, a vida. No passado, um beijo intenso e carnal, o canto misterioso e suave encanto canto da sereia, alguém que se encharcava e a gente ria. Hoje, uma tristeza encalacrada que se alonga ruminando horas, a mancha espessa dos lamentos. Ah, quão diminuta e primitiva palavra Splash! , que escarnece e dilacera, no velejar certeiro dos destinos!
Não tenho humores, astrolábios, nem cartas de navegação melhores que as cinzas desta quarta-feira. Noite chuvosa. Uma jovem deixa o boticário, premida por dor de dentes. Seu nome: Suzan, desejava ser cantora. Cruza com um cavalheiro elegante, bem mais velho. Seu nome: Carlos. Àquela hora, no temporal, buscava num mágico depósito , quem sabe? , a nudez da infância. De súbito, rodas de uma carruagem explodem na calha encharcada e splash! ele se enlameia. Desajeitado, ampara-se na moça. Ilusionados, aninham-se. Eia, o idílio, o repente dos acasos, a rede dos trapezistas costurada em sonhos! Mas passa o tempo, diligente e formal. Ela, sereia cantora, desvanece no paredão das vaias, nas fotos arrancadas dos cartazes. E se exaure na bebida. Ele, magnata poderoso, chamusca-se no enredo só de gente. Sozinho, verga mirando a sorte multiplicada num jogo de espelhos. Ave, o Cidadão Kane, os imponentes teatros de ópera, os castelos de alicerces flutuantes, o insensato xanadu que esboça nossa vida! Eia, “Rosebud”, o botão de rosa germinado em fictício gozo, a quietude abafada dos destinos, a promessa aprisionada numa bola de cristal, tão transparente e sorrateira que ocultara o desvario! Ave, o coração espatifado, a carruagem traiçoeira singrando poças na alameda escura, o vocábulo ignoto, banido dos dicionários! Eia, sílabas dispersas tiritantes, sonoridade de esplendores e ocasos, na torrente inexorável dos naufrágios! Tudo, resumidamente, splash!
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