HOMEM-ARANHA

A narrativa é uma teia ornada por silencioso aracnídeo no meio. E, pelo tecido de fios entremeados, na mais frágil das moradas, perpassa lento um contador de histórias. Às vezes, malicioso, puxa por um fio escondido, desfiado, do novelo da vida. E zás, traz à tona o assunto encoberto, que não lhe era intenção revelar. Com a bola de fogo de pata em pata, e zelando por não arrebentar o fio tênue da teia, sua esperança é fiar um relato com final feliz, preso à presa incauta e sua mais palpável criatura: o leitor. Em caso de não conseguir, não será uma aranha com histórias pra contar, mas uma tarântula introvertida e surda, torpe, esquecida no silêncio indiscreto do desconsolo, ruína de um novelo sem começo, meio e fim.

Perde o fio da narração, como se a alma lhe escapasse do corpo durante o enlevado e bambeante sono. Mas puxando pela linha do meio, escondida, narra o contador de histórias que a amiga era mãe de duas garotas: Maria e Joana. Serve-se do vinho, e lhe vem a percepção de que, por aquele fio, a história vai dar em nada, exposta sem o engenho, visgo arrebatador e a tintura da paixão. Mas a aranha desencadeou o relato, lançou seu fio pegajoso, segurando o leitor por um laço no mindinho. Sabe que, num abalo qualquer, lá vai sem história a sua presa, dispersa como gente ordinária, no mundo insosso, desalmado e comovente...

Por teimosia, o contador relata que a amiga, antes de vir ser mãe das meninas, gostava de fumar, defronte da irmã gêmea, umas coisas que vinham do Norte. Puxava o fumo, e o estancava, e o devolvia em som sibilante de gozo e alucinação. Ela imaginava: viriam à luz Maria e Joana, pessoas reais, num tempo em que seria sanfoneira virtuosa e empresária, negociando móveis de madeira beijada pelo tempo, recolhida de alguma demolição em Minas, e convertida em aparadores, criados-mudos, oratórios e silenciosas mesas de centro... Dá outra tragada bem funda e, pelo cinzento que se esfuma, vai cantarolando por velozes velas, devota cantiga de berço, de cores e nomes: “você é meu caminho, meu vinho, meu vício, desde o início estava você. / meu bálsamo benigno, meu signo, meu guru, porto seguro, onde eu vou ter. / meu mar e minha mãe, meu medo e meu champanhe, visão do espaço sideral... / onde o que eu sou se afoga, meu fumo, minha ioga, você é minha droga, paixão e carnaval... / meu zen, meu bem, meu mal”...

Verifica por um fio tenso se haveria jeito de salvar aquela história, direcionando nova aventura. E o contador de histórias já observa a amiga voltando ao rolo de filme do Homem-Aranha. Era também real o cinema, como a maioria dos cinemas, feito de ladrilhos, tela branca e paredes. No escuro, o herói é Peter Parker que, aos seis anos, vê chegar de mudança a nova vizinha. E exclama: “isto é um anjo!” Mary Jane Watson é seu caminho e vinho, desde o início, ao vê-la da janela, no uniforme azul. À janela de sempre, vê Mary Jane, altas horas, a beijar desconhecidos, sob os gritos bêbados do pai. No entreolhares planejado, Peter aciona a lançadeira de fios, mas não consegue laçar a moça, baldia, alheia, no véu de ilusões que era só dela. E, nessa teia, é picado por outra mágica aranha, que o faz livrar-se dos óculos, escalar paredes de prisões, voar pelos telhados, vigiar e combater o mal. Conta o contador de histórias que Peter quisera ser fotógrafo de jornal, mas enovela-se noutro fio da solidão. (A amiga se impacienta no cinema.) Mary Jane é porto seguro; mas teria que renunciá-la, para aventurar-se na senda de si mesmo – o Homem-Aranha –, dádiva e maldição, ilusão e maravilha.

A amiga, mãe das meninas, está enredada nos fios de luz do cinema e o tecido penetrado do existir cotidiano. Peter Parker, agônico à sua frente, era o filho pequeno de um amigo; nem pressentiu o amor do anjo, na casa vizinha. Mary Jane, Maria, Joana..., bingo!, marihuana... estariam num sonho distante, maconha de ilusão... Senhor da fortuna e predestinações, o narrador conduz a amiga ao patamar das transparências. Ela vê a vida aos solavancos, escalando edifícios, saltando em precipícios, entre os murmúrios imprevisíveis da terra. Aspira profundo aquela coisa do Norte, olhando-se no espelho da irmã gêmea. E as linhas do destino vão planando libertas, numa história de paz, entre nuvens... na luz lívida do espaço sideral... Preso às teias da vida, o Homem-Aranha parte em viagens, venturas e desventuras.

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Romildo Sant'Anna, escritor, prêmio 'Casa das Américas' (Havana), é curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' - São José do Rio Preto, Brasil.

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