Donzelas guerreiras são fabulosas valquírias, feitiço insondável da alma. Anjos e demônios, pulsam em irresistíveis tentações. Erram por veredas e sertões, em gestas lendárias, vagando em quadros imaginários, ou comendo o pão que o diabo amassou nos descaminhos da vida. Materializadas, é fácil percebê-las no cotidiano, basta mirá-lo: Marina Silva, amazona da floresta, Dulce Maria Pereira, orixaguinhã dos quilombolas, Heloísa Helena, voz plebéia da indignação reprimida... Fadadas ao padecimento físico ou simbólico, são castigadas por inversão de papéis inscritos na tábua dos direitos e atributos masculinos. Erundina foi ao topo da montanha e cedeu à rudeza imperiosa dos ventos. Essas mulheres renascem, eternamente, como é eterna a natureza humana.
Na mitologia, personificando luta, foi donzela guerreira a sábia Atenéia, símbolo e deusa do mundo ateniense. Em lenda chinesa de antanho, a camponesa Mulan disfarça-se de homem e substitui o velho pai no exército imperial. Destemida, expulsa os bárbaros invasores. Sem sabê-la donzela, encanta-se por aquele soldado seu próprio comandante. Tal fábula enternece em singelas narrativas, cantigas de ninar e filmes de cinema.
Movida pela fé cristã e vozes sobrenaturais, a força aldeã de Joana d’Arc comandou batalhas em trajes masculinos. Mudou os rumos da Guerra dos Cem Anos. Mulher-homem, não pôde dar-se em casamento, senão às juras de Deus. Supliciada, foi à fogueira por pecado. Revive em mosaicos de admiração em nossos devaneios.
Dos cafundós medievais e singrando atlânticas ondas do tempo, circula pelos sertões nordestinos o livreto “A Donzela que foi à Guerra”. Tal fábula realiza a intersecção entre o popular e o erudito, sendo inspiração à mais fascinante e proibida história de amor: Riobaldo e Diadorim, em “Grande Sertão: Veredas”.
O romance de Guimarães Rosa se faz de um longo e intrincado depoimento de Riobaldo a um desconhecido. Previne que as coisas passadas têm a astúcia de se remexerem dos lugares. “Viver é um descuido prosseguido”, suspira. E acrescenta: “sertão é dentro da gente”. Vivendo como jagunço, agrega-se a um companheiro, o impetuoso Reinaldo, apelidado Diadorim. Endurecido pela aspereza da vida, o narrador oscila entre o desejo e a repulsa àquele jovem, enamora-se dele. Só depois de morto, e ao ver tirarem-se-lhe as roupas, descobre-o como donzela guerreira, Maria Deodorina. Diz: “aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca... não sabia por que nome chamar, e exclamei me doendo: meu amor”.
O casal mais famoso da Literatura Brasileira talvez seja Peri e Ceci, de Alencar; o amor mais insatisfeito e submisso aos enigmas do espírito é este dos dois jagunços. Aquele se inscreve no rol das circunstâncias passageiras; este, inda que estranho, é o mais universal. Toca fundo em questões que ultrapassam os códigos morais, religiosos e históricos. Mostra o ser desnudo, grandemente humano na relação ética e afetiva com o outro. Donzela guerreira é feminilidade em vestes masculinas. São papéis que se invertem porque puramente humanos. Despida, sem nome ou sexo, vê-se por dentro a alma eternizada. É só inocência, que a masculinidade ancestral e a falibilidade da vida recusam a aceitar. Corpo e alma, homem e mulher, eis o mais belo e antigo dos duetos. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação
em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal
TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de
Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto.
Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais
de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
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