ROMILDO
SANT'ANNA

 

 

 

Sagaranas
só de bois

 


.

Boi tem nome e apelido de gente. Ou é tratado pela graça que muito humano poderia de ter. É Minerinho porque filho de Minero, é Paulista e Paulistinha, Neguinho, Possante, Possantinho, Pantanero e Lobisome . Tem Estrelo, parido de Estrela, Canindé (bochechudo e chifres semilunares), é Sintido, Vermelhinho, Gigante, boi Bandido e Marelinho. Tem Maiado, Maiadinho, Espadio, que era filho de Espadia, baraiado com Sete-de-ouro, Rei-de-copa e Boa-bisca. É Gaiera (que tá chegadinha de cria), Brinquinho da Brinquinha do Brilhante (que até falava dormindo). Tem Cigano, Bordado, Jangado e Jangadinho, neto de Jangada, Moleque, boi Veludo, Palácio e Namorado. É Palacinho (que não é filho do boi Palácio), Delegado, Princesa , Rosera... um montão de parentelas e nomeações colhidas pelo boiadeiro no arbusto de uma vida em maravilha.

Boi que é boi não faz conta de ter nome de mulher e fica bem na averbação. Seu Manuelzão Nardi diz que lhe soa musical “Rosa Amélia” pra um garrote. Cresce e, no demais da vida, é feito adulto nas quebradas do sertão. Porque o caboclo das bibocas é mistura de muié do mato com matuto das lonjuras, vindo nas velas do mar. Boi entende e atende pelo nome. O de carro conversa com pessoas e entre os bois. Introspectivo, vez por outra, diz coisas que nenhuma gente sabe. Pois boi que não fala, mesmo que pra si, é tapado, burro como tijolo. Nem se percebe tal e qual um boi – diria seu João Rosa, caboclo excelso.

Humano fala floreado, cavucando imagens. Boi, não, comunica-se coordenado, direto no assunto. É ladino assuntando o feitio e riscado dos humanos. Tem gesto e estro de poetas com letras de máquina, feito o Drummond, que falava com modos de boi velho. Os humanos – diz o velho boi mineiro – são “tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um lado pro outro, os humanos, sempre esquecidos dalguma coisa. Certamente falta-lhes não sei que atributo essencial, posto que se apresentem nobres e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves, até sinistros. Coitados, dir-se-ia, não escutam nem o canto do ar, nem os segredos do feno, como também parecem não enxergar o que é visível e comum a cada um de nós, os bois, no espaço. E ficam tristes, os humanos, e no rasto da tristeza chegam à crueldade...”Além de artista, existe boi encrenqueiro, boi galinha, porco, galo, veado, boi pavão (aristocrata e vende o sêmen), boi burro, de escorpião, de touro, de peixes... Tem boi pula-cerca e vaca de libra que atraiçoa té fora do cio, feito um curral de gente neste mundo. Existe boi que avoa, que é o Boi-lua do Renato Teixeira. Ficou lá no céu boiando e nunca mais desboiou. E também o Boi-voador, parido de um da prole do seu Sérgio Buarque.

Tem boi de toda qualidade: o índio-brasil da orelha grande e mole quando nasce. O caracu, bom de carro, é bravo, danado do casco riscado, boi dos vinte e um berrados. Tem o gir da orelha engavionada, o suíte meio preto, queimado, o graserá da orelha larga e fumaço. E vem o zebu, muito rúim de amansar. O mestiço é o que mais entende o carreiro. Antes de tudo é um forte, inteligente e ligeiro. Só que não pode ficar relando nele, porque fica bravo que nem brasileiro. Boi pula, tem os quartos moles e a bunda pra cima, sendo raro peão que pára nele. Boi-corneta é defeituoso no chifre, aleijado, com razão pra ser de gênio. Existe boi-vaquim chispando fogo pelas guampas lá no Sul, tem o boi-santo, mansinho e milagreiro do Padre Ciço, tão resignado e santo quanto os tantos e tantos bois-de-piranha. Boi-de-jacá brinca em São Paulo; no Norte tem boi-bumbá, surubim, barroso... Os brincantes brincam o bumba, meu boi!

Boi é a parte humana, bem-aventurada do caboclo. A ela recorre quando se lhe fenece a alma, nos forrobodós e encrencas só de gente só. No boi põem cangalhas, ferrolhos na chincha e lhes furam as ventas, penitente por ser indócil. É legislação de humanos de pedra, desalmados. Bois sorriem de gente, como a moça da pintura. Há os enlevados, molecotes, os que bafejam na manjedoura pro menino. E os barbatões de veneta, zuretados, bois de lua. Fazem o que lhes dão na telha. Um desses tem por nome Soberano. É desse tal que o camarada sorve a pinga de muito ensinamento, sumo ancestral da graça inexplicável de existir. Existir num pasto encantado, misericordioso, comungando cheiros de mato e capricho das estrelas. Campo sem-fim donde germina toda espécie de entes, bichos, gentes e, finalmente, bois.

 
.
.
Romildo Sant'Anna, escritor, livre-docente, é autor do livro “A Moda é Viola – Ensaio do Cantar Caipira”.