ROMILDO
SANT'ANNA

Ruas e Nomes
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No que me concerne, reivindico a primazia: meu filho é o maior perguntador do bairro. Inquiriu-me como uma criança pode se chamar Osvaldo. É nome de adulto, pai! Imagina um menino... Osvaldo Aranha! Saí da reta, como se diz, e lhe devolvi outra pergunta: como pode um adulto chamar-se... Plínio, não parece nome de criança? Recordo que na rua em que nasci, a Independência do Brasil, aparecia caiado no muro: Plínio Salgado. Eu, meio inteligente, entendi pela metade. Era reclame de algum comestível, salgado, não descartando a possibilidade de haver um plínio doce no balcão da padaria. Só depois vim saber que era gente, grande mesmo, de Roma, um Plinius pleno, completo e raçudo, de reluzente elmo e armadura escovada, ou, quiçá, algum tribuno arquejado em panos de senador. Mas nosso pai explicou que o tal Salgado, nome de outra rua da cidade, era dotado de atributos que também meu filho não entenderia. E me perguntou: e a rua Independência, meu pai? Não me adiantou vir com a história de que o sol da liberdade, em raios fúlgidos, brilhou no céu da pátria nesse instante... Brasil independente de quê, como, onde, quando?

Evocando o velho Recife, Manuel Bandeira escreveu: “Rua da União... Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância. Rua do Sol, rua da Aurora... Tenho medo que hoje se chame do Doutor Fulano de Tal”. Pior, moro numa rua de nome em que o fulano talvez nem seja doutor, tampouco de tal. Que importa! Deve ter sido invento de um desses políticos de olho nos loteamentos e enchem ruas com nomes de cabos eleitorais. Ah, preferiria que a cidade fosse repartida em bairros temáticos, como o Jardim dos Seixas e suas flores: rua das Hortênsias, dos Lírios, dos Trevos. E minha rua se chamaria Tom Jobim, Dolores Duran... Seria fácil de explicar ao garoto. Era só convidá-lo à poesia: “e eu que era triste, descrente desse mundo, ao encontrar você eu conheci, o que é felicidade, meu amor” ou “hoje, eu quero a rosa mais linda que houver, e a primeira estrela que vier, para enfeitar a noite do meu bem”. O filho apanharia o sentido de aconchego, afeto e esperança, e eu teria estímulo de pelejar pra que minha rua fosse chamada verdadeiramente rua, e não... logradouro. Temos, é certo, a rua dos Músicos Riopretenses. Infelizmente, não aparecem rio-pretenses na ortografia.

Nomes de ruas definem o tempero sensível de um lugar. Há anos havia a rua Domingos Jorge Velho. O tal, xucro, foi o que se pode chamar um filho da mãe torturador e assassino de escravos índios e afro-brasileiros. Em tempos outros, trocaram por rua Zumbi, e foi escrito embaixo: “herói da raça negra”. Ora, na Tiradentes escreveram “herói da raça branca”? Taí o preconceito embutido numa emenda pior que o soneto. Se quer saber se adulamos as patentes militares, vejamos: a Igreja Ortodoxa, no miolo da cidade, fica à rua Marechal Deodoro, entre Coronel Spínola e General Glicério. Se reverenciamos o imigrante árabe, temos avenidas como a Murchid Homsi, Bady Bassit e Nadima Damha. Se nos remimos de infâmias e injustiças, ali estão outras avenidas: José Eduardo do Espírito Santo e Benedito Rodrigues Lisboa, ex-vereadores que, com Armando Casseb, foram à rua da amargura tachados de comunistas, e cassados pela ignota Câmara Municipal em 64. O filho não entende dessas coisas e por isso pergunta, faz perguntas. Chegará o tempo de descobrir que a rua é a primeira via do destino. No nome dela, um enigma, peça dum tabuleiro que, em noites e dias, mistura nossas feições, desenha a imagem humana da cidade. Contará aos filhos, que explicarão a seus filhos...

 
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.