Rosa ficou no sofá, gélida e branquinha. A morte beijou-lhe a fronte, na hora do Show da Vida. Qualquer domingo, sem maio nem primavera. Pacata, passava o café doce no coador de pano. Vestia o algodãozinho espartano, limpinho, tremeluzindo florinhas que pareciam do avesso. Olhar submisso, sorriso acanhado e franzido, era encasada com o mais febril dos pintores, ávido de fama. Em desconvívio, ela se via assuntando, esgueirada por venezianas, como quem mira chispas da fogueira. “Quando mudei pra cidade, minha mulher não tinha o que vestir. Foi preciso emprestar com a Helena, minha irmã” – relatava o marido. Lembra-se de que, ainda de menor, saiu da roça amedrontada por rabo-de-saia que ele tinha. Secaram-se as paredes dos dias. Ele, ancho de si, de braços com a vida; ela, com os pequenos travessados à cintura, outros lhe esmigalhando a roupa. Em ausência, permanecia ouvindo seu rompante na vitrola: “Eu disse a dona Rosinha que ia pintar três trabalhos para a exposição. Respondeu que eu não era artista, que não sabia nada, não tinha escola e meu tudo era uma enxada na mão”. No gesto só de si, desfrutes que ela nunca sonhara: “Os artistas são queridos, e quando aparece uma mulher bonita e me beija, eu beijo também. Se não beija, não beijo. Minha mulher não compreende. Esquece que sou dela como marido, mas sou do mundo, e vivo de acordo com as regras”.
Em pálido cheiro de campo, era uma flor em cores transparentes. Afora a sombra da patrulha inquietante, foi só de marido. Certo dia o mercador aconselhou de pintar remedando o primitivo jeito dele. Prometeu exposição na capital, e até trouxe o botão de rosa embrulhado em celofane. Põe uma aspirina na água, dura mais! – recomendou. De tão fácil e garranchado, era pouco mais que nada. Campeou, ocultos, jardins onde nunca estivera, postais que ninguém lhe despachou. E, bulindo escondida em pincéis rejeitados, coloriu tímidas telinhas. Por primeira vez sentira prazer no cheiro da tinta fresca! Mas o chefe, onipresente, veio a saber da façanha. Só que se amoitou em sonso para dar-lhe outra lição. Ela nem percebeu diferença no desprezo, respirando em pensamentos. Seria uma pintora com retrato no jornal, parlaria com visitas adoráveis e, quem sabe, pinchava da janela as borras do café, o sofá de courvin vermelho e descoradas florinhas no vestido. Porém, com uma faca da cozinha pisando encima dos quadros, José sentenciou de veneta: “Nesta casa basta um artista. Eu!”.
Permaneceu no estofado, sentindo esfriar-lhe o colo, derreter-se em gelo as pontas dos dedos. Da tevê, um claro incômodo nos olhos verdejados. Pensou de apagar aquela luz, ir-se à cama. Mas lhe convinha uma preguiça tosca, sem cobrança e hostilidade. Evaporava-se ali em sono, além da melancolia. Recatada, quis ajeitar-se no vestido, mas o corpo se teimava, querendo aconchego no berço suado, seu sofá de toda hora. Incomodada no peito, desprezou o acerto de contas com as trinta e duas damas que lhe surrupiaram o marido, e se beijavam... beijavam. Presa, sentia-se liberta, tão real o desejo por coisa alguma, e nada explicar, e nada cumprir, envolvida num distúrbio sem saudade, atriz de uma fita encadeada de rumores, longínquos retalhos. Esvaía-se de tudo que não ouvira, dos sonhos desfeitos na impossibilidade de tê-los, das doenças que dão nas plantas e nos filhos, murmúrios de cores sufocados no silêncio de cartas que ninguém lhe escrevera, de desenhos que jamais fizera. Aos poucos, alevantou-se, estiada, flutuante e peregrina em mágicas estradas. E, abafado pelo brilho imensurável de outra tela, inda discerniu o coro de vozes festejando, no ocaso de qualquer domingo. É fantástico! (Rosa Soares, 1915-1984). |