A MORTE DO GOLIAS


Davi era filho de um também José, pastor de Belém, pacífico e acolhedor. Moleque mirrado de corpo, tinha os modos de gente simples e de boa fé, cuidava do roçado e ajudava na guarda ao pequeno rebanho. Na outra ponta da história, Golias era um filisteu da cidade de Get. No berço da riqueza, era um burguês exibido, de espírito vulgar e estreito, grandalhão, arrogante e presumido. Nas medidas daquela época, tinha meia dúzia de côvados, mais um palmo, o que seriam 4 metros de altura, hoje em dia.

Davi, o pequeno agricultor e pastor, entoava canções e era poeta. Amoroso, sentimental e ordeiro, foi exímio tocador de harpa, deixando o gado na paz da calma. Escreveu hinos e salmos que inda hoje são cantados nas liturgias e ritos, e venerados por cristãos e muçulmanos, Ibn Sina e Averroés. Tudo em contrário era Golias. Poucas palavras do gigante são lembradas; nenhum edifício lhe foi erguido em homenagem, nenhuma estátua, nenhum poema o reverenciam. Lendário e turrão, atribuem-lhe ações sinistras que extrapolaram o seu tempo. Com a riqueza acumulada, financiou golpes de estado e ditaduras preferencialmente militares, promoveu embargos econômicos e terrorismo em outras terras. Incontáveis crianças morreram de fome ao preço de sua ganância; países desceram à miséria devido à lei do confisco e os juros de rapinóia. Promoveu cruzadas aos que seriam os comunistas dentro e fora do país; preservou a pena de morte com uso de injeções letais, cadeiras elétricas e câmaras de gás. Moralista, condenou crianças por artes infantis. Organizou uma formidável indústria de todo tipo de armas, mísseis teleguiados e bombardeiros. Necessitava de periódicas guerras e ações militares para escoar o arsenal que fabricava. Fomentou ódio entre irmãos em várias partes do universo, e a imolação dos holocaustos entre os desvalidos. O tal gigante filisteu lançou a bomba de mil megatons, imolando dezenas de milhares de mártires, e condenando seus descendentes ao germe do ressentimento e do câncer. Voraz e ameaçador, confiscou o óleo diesel para vendê-lo em postos ao preço inferior ao de um litro d’água, claro, à custa dos outros, semeando aos quatro ventos as flechas da injustiça e da raiva.

Cansados da opressão e massacre, e sem mais o que perder, os povos de Davi entraram em guerra contra filisteus. Era o embate desigual do mais rico e paramentado contra o mais pobre e humilde. O gigante Golias, tornado guerreiro-símbolo, tinha o capacete e dardo de bronze, os ombros recobertos de escamas metálicas; reluzente, portava lanças que pesavam 600 siclos de metal. Escolhido para enfrentar o gigante, o pastor Davi carregava uma atiradeira de couro e cinco pedras, além da fé que penetra a vida e potencializa a coragem. Frente à frente no campo de luta, o jovem pastor pronunciou umas palavras serenas, mas enérgicas. Fez ouvir que Golias vinha do fogo devorador e, a seu redor, carregava a tempestade violenta. Afirmou em frente de seus irmãos que ele, Davi, nunca tomou um novilho de casa alheia, sequer um cabrito do curral. Não lhe devemos nada – bradou com valentia –, e não aceitamos mais o consórcio da submissão e miséria. De que adianta – prosseguiu – Golias recitar preceitos morais se, ao ver um ladrão, o acompanha, e se mistura com os piores, e solta sua boca para o mal? E perguntou, desafiador, se não são seus lábios que tramam a fraude em nome da democracia. O gigante ficou perplexo com o atrevimento e insulto. Davi meteu a mão no alforge, tomou uma das cinco pedras e arremessou-a com a atiradeira de couro. Golias teve tempo de gritar com desprezo que possuía as garras do condor e lhe era ofensivo lutar contra um reles tico-tico. Mas a pedra fulminante varou o espaço, contornou os ventos e, certeira, penetrou-lhe a fronte. O colosso permaneceu de pé por uns minutos, estuporado e aturdido, e rugiu e ruiu em urros, alevantando a poeira que se espalhou pelo mundo.

As cidades se extasiaram com o acontecido. A coragem de Davi vinha de uma força e grandeza que só é comum entre os humildes. E, daquele dia em diante, todos os povos souberam que o pastor foi mesmo guiado pela fé, e pelo maravilhoso vigor da força que vem das ondas acumuladas na fúria dos oceanos, no ventre dos vendavais e no clamor da justiça. Força estranha que, amiúde, faz do planeta terra uma pequena e sagrada extensão do céu e, misterioso, realiza a sublime comunhão com Alá e o infinito.

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Romildo Sant'Anna, livre-docente, escritor, prêmio Casa de las Américas – Havana, é curador do Museu de Arte Primitivistas ‘José Antônio da Silva’ – São José do Rio Preto – São Paulo - Brasil

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