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ROMILDO SANT'ANNA
Adocicados Pronomes
 

Diz-me o cronista que, em criança, ensinaram-lhe português na verve refinada de Camões e padre Antônio Vieira. Disto sucede que, quase tudo o que aprendia na escola, e lhe exigiam em severas sabatinas, era diferente do que se ouvia nas ruas, no falar cantado do populacho informe. A língua do povo, grosseira e rude - sentenciava a mestra em sua cruzada civilizadora -, não passaria de um burburinho tolerável, proibido em corredores de ateneus e na literatura. Pra situar-me na história - explica o narrador -, sonhava seus sonhos de infância em ruas de arrabaldes, casarios baixos de duas águas, tais e quais capelas perfiladas, caiadas de esperança. Foi quando se deu conta das tantas pedras no meio do caminho, transformadas em rochas de basalto pela ínfima tarefa de se tentar inverter a ordem dos nomes e pronomes. Compreendeu que tudo era difícil, pois, contradizendo o poeta, mudam-se tempos, mas nem sempre se mudam as vontades.

Ah, pois, que crueza, que vontade de nada, que perda papel o desvario desta crônica! Em melancolias, Machado de Assis selaria seu enredo derrotista: "O homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isto sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes". Eia o livro da vida, relação sumária de nomes e pronomes que morrem com seus donos! Poria aqui o fim no meu texto...

Mas, saiamos do latifúndio de amarguras - convida-me o cronista. A força da lua é por demais crescente e, na manhã, late um sol agasalhante. Ademais, a bondosa professora de pronunciadas olheiras - que os céus a tenham entre arcanjos! -, era devota da virgem e o único órgão em que tocou foi duma igreja. Pudera, não se iria imiscuir no profano das vilas, na língua lanhada de plebe. Ele é o leste, conforta-me o cronista, e por mais que do povo tripudiem, resiste em altivez. Ele é a nação coloquial e festeira, no linguajar instintivo. E, sentindo-se assim povo-menino, viu-se como um bicho genuíno e nacional, cronista que aprecia um certo português errado. Lembra-me que Gilberto Freyre escrevera que o amaciamento da língua lusa se deu pelo contato do escravo negro com a criança branca. Daí o falar criativo do povo, rude e terno, e que desmancha na boca.

Manuel Bandeira, arremedando o português macio duma escrava, faz São Pedro responder: "Entra, Irene. Você não precisa pedir licença". Ora, como! - se escandalizaria em regras a gramática - combinar um verbo em segunda pessoa a um pronome em terceira. Por natureza soberana, o padrão culto só aceitaria o infeliz e autoritário "entre". E, sendo assim, nunca poderia uma preta receber o convidativo e adocicado "entra!", abrindo-se-lhe o portal do paraíso. Conta-me o cronista: ela me disse assim - a referida professora -, que pronomes pessoais atraem pronomes átonos. Mas Lupicínio Rodrigues escrevera: "Ela disse-me assim, tenha pena de mim, vá embora. / Vais me prejudicar, ele pode chegar, tá na hora!". E, convenhamos, nada mais certo que o pretenso erro. Quem poderia esperar que uma mulher fosse atinar em colocações pronominais, no instante aflito de um flagrante? Raios partam, ou infeliz traidora, ou desditosa gramática!

No consenso proletário e macio de nossa língua, disse um menino trepado na porteira: "toca o berrante, seu moço, que é pra mim ficar ouvindo". Pela regra, "mim" é a forma oblíqua de "eu", empregado como complemento e objeto da frase - ensinava a professora. Mas o menino, decerto imbuído pelo estilo de seu povo, deu forma oblíqua ao sujeito, e tudo ficou tão delicado e nos conformes do afeto. No "erro", o retrato sociológico da amizade, conciliação e ternura. Em "Duas Cartas", cateretê de Zé Carreiro e Carreirinho, diz um caboclo lamentoso que o "meu bem desprezô eu". Que primor estético de solidão e carência, que amargura encalacrada num coração caboclo, que virada de página de um sensabor urbano (me desprezou) para a essência do rural (desprezô eu)! O certo do anzol é ser torto - arrematou o cronista. E teimando-se erudito, fez-me a citação de Gonçalves Dias: "não se repreende num povo o que geralmente agrada a todos". Compreendi que a crônica que me ditara, adocicando pronomes, era de fato uma parábola. Parábola da concórdia e tolerância.

 
 

Romildo Sant'Anna, jornalista e escritor, é curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva'.