PIXAIM


A escritora Dinorath do Valle possui, numa de suas caixinhas de costura, o condão mágico de se fazer repetitiva: o que exprime é sempre e sempre surpreendente. Quando jovem, era assim; e agora, meio velha (por favor, não me mande à que me pariu!), encarna, repetidamente, a leoa costureira e conferente dos tempos, da antropologia e da observação afetiva e crítica da existência, a confirmar os versos do poeta: "o homem velho é o rei dos animais". E faz essas coisas sobre o alicerce da integridade pessoal e artística, valendo-se do absoluto jeito de exprimir a natureza individual e societária: a arte. A artista expressa a arte pelos meios possíveis; e, ao longo da vida, faz-se a si mesma, com arte, num gesto de incorporação vital, exemplar e pedagógica. Acabo de rever o filme "Pixaim" (2001), do qual Dinorath do Valle é co-autora.

Se o filme anterior, "Héteros, a Comédia" (1998), também realizado com Fernando Belens, era essencialmente dramático e plástico, "Pixaim" tem como eixo estético a palavra literária, suas sutilezas e possibilidades. É a partir dela que emergem as interpretações sensibilíssimas dos atores dando vida às personagens; a palavra determina a regulação do tempo e pontuação rítmica dos cortes de montagem para fazer-se cinema. A locução da Rádio Guarani - "a rádio que fala a sua língua" - em algumas seqüências, e as letras das canções, na trilha musical, exercem a mesma função de guia e sustentação do que se vê na tela. A compreensão exata literariedade implícita na literatura em si do roteiro, e na antevisão do próprio filme, pelo diretor e equipe, parecem determinar o poder envolvente da fotografia de cores suaves e intimistas, os movimentos cênicos e pontos de enfoques da câmera, a marcação dos efeitos sonoros, a interpretação dos atores, diga-se, impecável e comovente. Esse mergulho e interação com o cerne das palavras de "Pixaim", em estado de roteiro, por parte de Fernando Belens, lhe confere não só a perfeita concepção plástica da luz em movimento, que caracteriza o cinema, como o refinado domínio da teatralidade cinematográfica dos atores, no quadro da tela. E, assim, o espectador se envolve nos prazeres da emoção, não só pelo fundo sociocultural do argumento, como pelos procedimentos sensíveis na construção da magia cinematográfica, que fazem definitivamente de um filme, um filme de arte.

"Pixaim" é retrato e metáfora da identidade brasileira e seus vícios históricos de dominação, dos anseios emergentes pelas transformações sociais, das lutas étnicas e de classes, da paranóia e brutalidade dos poderes constituídos e informais atuando como sistema controlador e contencioso, e da percepção deste panorama, um tanto nebulosa e confusa, por personagens humildes e explorados, mas atentos com o que passa ao redor. Na busca e entendimento de nossas raízes e entornos históricos, é um filme baiano e faz disto sua própria essência temática e estética. Tem em mente, afinal, que foi na Bahia que o país nasceu, para espalhar-se nas formas de Brasil. Situa-se contextualmente em 1970, no ápice da Ditadura Militar. E, num processo de embaralhamento de cenas e situações, como um painel cubista delicadamente desenhado, vai e volta do passado ao futuro, a exprimir que o país é isto mesmo: emergência de mudança, com o peso retrógrado das resistências que o puxam para o passado das oligarquias brancas, do escravismo e servidão da maioria exclusa - o povo. Assim, retrata os fundamentos institucionais que garantiram o abismo que separa o mandante do mandado, o branco do preto, o rico do pobre, o católico do pagão, e a dominação do homem sobre a mulher.

Ancorando-se no sincretismo religioso que fez das três raças o Brasil, e na tensão subliminar provocada pela idéia de cabelos liso e pixaim, "Pixaim" oferece-nos um passeio ponteado por frases como: "o povo faz tudo errado", "cê já viu negro num lugar decente?", "pobre não tem querer", "até que você [preto] teve uma idéia que presta", "o Riva [jogador, branco, na Copa de 70] é nossa patada atômica". E, com frases nessa dimensão, se expande a essência do filme: a tensão dialética provocada pelos movimentos de transformação social. Novas tensões se realçam em frases como "os comunas vão dividir tudo; se você tem dois filhos, entrega um pro governo", "depois que liberaram o candomblé, tem nego graúdo dizendo que safado vestido de saia e dançando candomblé é cultura", "salão [de mulher] e barbearia tão virando uma coisa só". "Pixaim" é um filme urgente e poético, um grito dos silêncios, pra quem queira ouvir. Uma voz sintetiza o engajamento político dos autores: "Tem gente de Iansã, tem gente de fogo no pedaço... A Bahia tá precisando de queimar"! São pedaços de sentido que simbolizam o Brasil.

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Romildo Sant'Anna, escritor, prêmio 'Casa das Américas' (Havana), é curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' - São José do Rio Preto, Brasil.

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