ROMILDO
SANT'ANNA

Pequena Enciclopédia

Escrever um livro é afivelar mochilas pra uma longa viagem na qual o escritor se extravasa dentro de si e cuja felicidade são as revelações dessa aventura. É processo solitário de descoberta e doação, de nascimento, vivência e morte porque, em dado instante, tem que terminar. Tenho em mãos um precioso diário de bordo: “Pequena Enciclopédia da Cultura Ocidental” (2005, Editora Campus), de Salvatore D'Onofrio. Toda enciclopédia é pequena diante da vida, vicissitudes humanas, seus quereres e saberes, e a máxima estratégia de navegante – seu autor – é possuir a argúcia retórica que permita a que o leitor navegue bem consigo, mesmo após a viagem. D'Onofrio se remoça em mitos heróicos, doma a fera das palavras na rotação das idéias, transforma-se num Orfeu cantando suave pra acalmar os oceanos e, desnudo, se oferece como nascente de águas calmas e brilhantes: seu livro.

“Pequena Enciclopédia”, com seus verbetes e nuanças remissivas, destina-se a compendiar o essencial do saber humanístico: pensadores, idéias, artistas, obras e personagens fulgurantes. Em 567 páginas diagramadas com refinado senso, inicia-se com o teólogo e filólogo “Abelardo”, seu espírito forjado na Escola de Notre Dame, escritos transformadores permeados por medieval aceitação da tragédia, e o casamento com Heloísa – uma história de amor vivenciada na dimensão do sublime, e que atravessa os tempos. Passando pelo naturalista Émile “Zola”, ressaltando-se que o autor de “A Besta Humana” é um dos inventores do romance experimental, o livro de D'Onofrio finaliza com o verbete sobre o místico e sábio iraniano “Zoroastro”, “aquele que riu ao nascer”, e que insinuou na produção do ocidente obras de singular reflexo como “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche.

Na introdução da “Enciclopédia”, Salvatore se expõe de um jeito que o revela em agudo desenho de si. Estamos diante de um investigador austero, paciente, inconformado e idealista, pronto a repartir com o leitor seu acervo de conhecimentos sedimentados pela vida. Faz louvação ao Livro, como objeto manuseável, pensante e sentinte, neste mundo das vivências fugazes e fúteis que o desprezam. Sublinha que a “cultura é a mais poderosa e eficaz arma política” e que os nossos tempos, mais do que outros, precisam do conhecimento pra solidificar cidadania, liberdade e vida social. Afirma que seu objetivo é divulgar uma tradição que, infelizmente, está-se perdendo em função duma tendência consumista, aplainada e sem cultivo das idéias. Que, na época atual, tecnicista e instantânea, tudo evolui, exceto os atributos da cultura, que nos distinguem como Gente. Reconhece, radicado na humildade, que seu trabalho convida à reflexão. E, citando Machado de Assis, profere autocrítica: “a primeira condição do escritor é não aborrecer”. Com tais pressupostos, o autor se exprime em estilo direto, claro, sem o pedantismo acadêmico que, tantas vezes, protagoniza ações narcisistas, tediosas e herméticas.

Tenho escutado, em várias partes do país, menções elogiosas aos livros de Salvatore D'Onofrio. Este seu mais recente trabalho consolida os anteriores. Expande-se em “Da Odisséia ao Ulisses” (1981, Duas Cidades), título que evoca, deliciante, Homero e James Joyce; resume-se em “Literatura Ocidental” (1990, Ática), que passa em revista a culminância das épocas, escritores e obras-primas. “Pequena Enciclopédia da Cultura Ocidental” é jóia que luz a disciplina inquieta do saber e radiografa intelectualmente seu autor. Manuseá-la, um privilégio. Lê-la, o prazer de desfrute dum livro cujo autor se dedica por inteiro à ciência do humano. E por isto se finca, como poucos, no território dos grandes parabéns.

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.