Para as classes populares, em geral, as tendências de modernidade na arte e a tensão narcísea que une críticos e artistas de vanguarda não passam duma tentativa de complicação da vida, volúpia pela novidade, galeria hermética de celebrações e palavras. Não passa, sobretudo, do afã de separar da maioria empobrecida as seletas gentes de cabedais, superiores na escala econômica, formadas e reformuladas em salões da alta cultura, nichos onde transitam os ares de refinamento e bom-gosto. Embora pareça haver um sentimento eivado de renegação desses valores, no entanto, as mesmas camadas populares tentam imitar e reproduzir os códigos “das alturas”, na tentativa de se transferir da dimensão proletária ou “de massa” para uma esfera mais elevada na escala social. Nos atos de consciência, um ebulir abafado: integração/exclusão.
Na década de 1930, ao mesmo tempo em que uma significante parcela intelectual e artística iniciava processo de democratização dos meios e materiais estéticos “do” e “para” o povo, o mesmo povo, em descompasso, voltava-se ávido à imitação dos modelos clássicos e elitizados. E, assim, se a música popular é a expressão mais fecunda da alma cultural, talvez por meio dela possamos visualizar esse fenômeno. Tomemos algumas canções dum ícone de seu tempo, Orlando Silva. Verifiquemos seus ardores acadêmicos da linguagem, o copioso romantismo, as formas barrocas, neoclássicas, parnasianas e simbolistas de lidar com as palavras e emoções, enfim a mistura de tendências tradicionais que, à parte a sedutora voz e força interpretativa, o fizeram carinhosamente chamado “o cantor das multidões”.
Nas letras, o tema predominante é amoroso; a voz exclusiva, do homem. Em “Rosa” (1937, de Pixinguinha), ressaltam-se o preciosismo vocabular, o jogo intenso de figuras ornamentais e enfeites adjetivos. Tais intrincados de linguagem carreiam, indisfarçável, um anelo de erudição. Num sentimentalismo penetrado de sonhos, a amada paira como sublime, inatingível, idealizada mais como pedra escultural imaculada que como criatura carnal: “Tu és divina e graciosa, estátua majestosa do amor / por Deus esculturada, e formada com o ardor / da alma da mais linda flor de mais ativo olor / que, na vida, é preferida pelo beija-flor!”. Imagens se aproximam do idealismo arcádico, penetrado do rebuscamento barroco, e resvalam em sugestões sensoriais bilaquianas: “O riso, a fé e a dor, em sândalos olentes cheios de sabor, / em vozes tão dolentes como um sonho em flor, / és Láctea estrela, és mãe da realeza, és tudo enfim / que tem de belo em todo resplendor da santa natureza!”.
Valsados tilintam na imaginação um mundo nobre e cortês. Alheio aos impactos modernistas, “Neusa” (1938, de A. Caldas e C. Figueiredo) foi extraordinário sucesso. Outra vez a idealização da amada equipara-se à natureza: “Há na luz clara e tranqüila do luar / um poema em louvor do teu olhar / porque a própria natureza / se enleva em tua graça, / canta tua beleza. / És como a flor mimosa da campina / que a sutil aurora beija e ilumina, / Neusa, também em teu louvor / eu canto esta valsa de amor”. Noutra valsa, “Apoteose do Amor” (1936, de Cândido das Neves), um erotismo reprimido por metáforas e santificações exalta a mulher em face do infinito: “Deus, só Deus sabe que os olhos teus / são para mim dois faróis clareando o mar. (...) São dois lírios os teus seios alabastrinos / quase divinos, parecem feito para o meu beijo...”.
Outra constante no repertório do “cantor das multidões” é o sentimento crepuscular da vida, próximo da morbidez do “mal du siècle”. Essa é a visão do homem pelo homem, como ser agônico, predestinado. “Caprichos do Destino” (1938, de P. Caetano e C. Cruz) é um dos muitos exemplos: “Se Deus um dia / olhasse a terra e visse o meu estado, / na certa compreenderia / o meu trilhar desesperado. / E tendo ele em suas mãos o leme dos destinos / não deixar-me-ia assim / a cometer desatinos”. E confessa, na segunda parte: “Eu quero fugir ao suplício a que estou condenado, / eu quero deixar esta vida onde eu fui derrotado, / sou um covarde, bem sei, que o direito é levar a cruz até o fim, / mas não posso, é pesada demais para mim”. São canções que sintetizam a intimidade da cultura e, à parte encantos poéticos e a própria melancolia entranhada no coração brasileiro, patenteiam, pela recorrência aos signos de erudição, uma ansiedade de ascensão social que, no país, pela arte, raramente veio a se concretizar.
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