ROMILDO
SANT'ANNA

Pantaleão
e as Visitadoras

José Simão, em crônica destes dias, e ante mais um dilúvio de acusações ao poder constituído, escreveu que só agora descobriu porque nos de eleitor aparece escrito “zona eleitoral”. Em costumeira mordacidade, embrulha na rotação dos sentidos a prostituição, eleições e mixórdias. Semelhante engenharia de disparates se desenvolve em “Pantaleão e as Visitadoras”, romance de um dos mais sensíveis escritores da América Latina, Mario Vargas Llosa. Diferentemente de “La Ciudad y los Perros” (1963) – alegoria da opressão ambientada numa escola militar peruana, “La Casa Verde” (1966), enfocando os rigores sufocantes da selva e “A Guerra do Fim do Mundo” (1982), tema apropriado de Euclides da Cunha sobre o taumaturgo Antônio Conselheiro e a insurreição de Canudos, “Pantaleão...” (1973) é uma ironia de implicações morais, farsa sul-americana da corrupção enquistada nos novelos do poder. Situa-se em local que prefigura uma metáfora: zona limítrofe entre Brasil, Peru e Colômbia, na pulsação da Amazônia. Ali, em surdina, num rascunho dos “tristes trópicos”, tudo pode. E o coronel Pantaleón Pantoja, honesto, obstinado e ignorante, é designado a estabelecer um serviço oficial de fornicação, batizado como “visitadoras”, destinado aos militares vigilantes da fronteira. Aliviados da tensão sexual – supunha-se –, os soldados estariam libertos de ânsias para o estupro, a arruaça e outras burlas de conduta.

Relativamente tão original e instigante quanto a novela de Vargas Llosa é a adaptação cinematográfica do diretor Francisco J. Lombardi, em 1999. De significativa repercussão internacional e primeiro filme peruano indicado ao Oscar, mais que uma fábula de humor ou alegoria do atraso como símbolo do “exotismo” hispano-americano, “Pantaleão e as Visitadoras” se faz pelo extraordinário equilíbrio entre o risonho e o trágico, o comum, o sumário e o insólito, as vertentes da pureza e as do cinismo, da aproximação funesta entre o prostíbulo e a política, da espontaneidade da vida e a barbaridade solene dos escândalos. A tal temperança se convencionou chamar Realismo Mágico – o que, entre nós, é puro realismo.

Suavizando a violência por meio de eufemismos, tão ao gosto dos tiranetes que corporificam o poder no Cone Sul, “meretriz” é “visitadora”; “prostituição” é “missão patriótica”. No falso polimento das atitudes oficiais, de um lado a engrenagem corrompida das maquinações políticas; de outro, o povo subjugado e excluso, e a prostituição que faz da destruição da dignidade um resumo de tragédia. O filme é precioso como narrativa: movimentos de câmeras na exata intensidade do ritmo, música sem estridência e de um regionalismo sentimental e anedótico que, não se prendendo à circunstância geocultural, universaliza-se como imagem das camadas subalternas e simplórias. Roteiro, na estrita junção da palavra, do drama e concepções visuais. À parte as virtudes da criação coletiva e a admirável direção, aguçada e inteligente, sobressai a uniformidade do elenco, mormente nos desempenhos de Salvador Del Solar, como Pantaleão, e Angie Cepeda, a sedutora Colombiana (no romance, a Brasileira). O filme de Lombardi põe em xeque a bandeira da moralidade em mãos de feitores medíocres, escarnece da vergonha e desumanidade, denuncia o desamparo do oprimido ante a ignomínia dos poderosos. Mobilizando semelhanças que não são meras coincidências, em vez de fazer rir, chora uma vida candente diante de nós. E se não nos salva, ao menos se vale pela exaltação redentora do humano, na maestria comovente da arte. Eia, o novo cinema hispano-americano! (PS. Disponível em DVD).

 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.