Há exatos 30 anos silenciava-se Neruda, a modernidade mais engajada e emotiva da América Latina. O ano de 73 calava mais dois extraordinários Pablos, estendendo um manto de silêncio na Espanha e no mundo. Morriam Picasso e Casals, ambos alijados do país. Pablo Picasso, sarcástico, lírico, incontrolável, deformava a realidade para convertê-la em retratos do transe agônico de um século de tantas conquistas, conflitos, belezas e infâmias. O talento desse Pablo foi, em si, a síntese de uma era, na estética e sentimento do mundo. Apressados como seu próprio tempo em rotação num eixo de sangue, seus pincéis transformaram em pintura a coexistência do bem e do mal, na alma de inumeráveis quadros. Artista de todas as formas e cores, foi na estupidez do exílio, e em preto e branco, que consagrou o instante da explosão do bombardeio nazista sobre seu povo em “Güernica”, denunciando a insensatez, o genocídio e os estilhaços de dor e momentos de trevas que marcaram o século 20. Do esplêndido artista herdamos a imagem excelsa e sinistra de “O Ossuário”, a dubiedade submersa em “Guerra e Paz”, o retrato de desespero e agonia em “Mulher Chorando”. Ao mesmo tempo, legou-nos incontáveis imagens de bem-aventurança, lirismo e candura, persistentes em tantas e tantas Palomas de amor e paz. Ah, que perda foi aquela, camarada!
Como se fosse pouco, 1973 ainda levaria Pablo Casals. Com a Guerra Civil Espanhola, sorveu a taça do desterro até o último gole do existir. Esse artista elevou as harmonias musicais de um século à escala do sublime. Tiritando no compasso de seu tempo, desenvolveu a técnica do arco e dedilhado, e alçou a gravidade sonora do violoncelo à primazia de solista. Sensível ao drama da humanidade, deu à sua obra o correlato épico da dor dos oprimidos, em meio aos temores e tragédias do que veio a chamar-se tempos modernos. Do talento de Casals sobressaem emocionados cantos à liberdade, justiça e paz. É autor do magistral sopro humanitário pela concórdia entre os povos: o “Hino das Nações Unidas”. Ah, que perda foi aquela, meu camarada!
Num pesadelo de tantas fúrias e ambições de riqueza e poder, o mesmo calendário nos levaria Neruda. Passaram-se três decênios, e ainda escorregamos no sangue vergonhoso dos massacres. Com o apoio militar dos Estados Unidos, foi em 73 a tomada odienta ao palácio La Moneda, o assassínio de Allende salvador, censura às idéias discordantes, a tortura e matança. Naqueles dias sem sol, misteriosamente, esse Pablo estava morto.
Vida e arte se confundem na existência de Neruda. Tantas vezes perseguido e exilado, escreveu em seu “Canto Geral”: “Ando errante pelo mundo que amo. / Na minha pátria encarceram os mineiros, / e os soldados mandam nos juízes. / Mas eu amo até as raízes / do meu pequeno país frio... / Não quero que volte / o sangue a encharcar o lírio, o trigo, a música. / Quero que venham comigo / o mineiro, a criança, o advogado, / o marinheiro, o fabricante de bonecas... / Que entremos no cinema, e saiamos / a comer nosso pão, a beber nosso vinho...” Um lirismo arrebatador se fez poeta, o mais famoso do Chile e da América Latina. ȁResidência na Terra” é fusão sentimental do século 20, o caótico de um mundo entre guerras, o surrealismo dos ossos humanos pendurados em janelas de hospitais, a ruína e a desintegração moral de seu tempo. Em mais de 30 livros, foi o artista inconformado com a injustiça, intolerância e opressão. Ofertando sua vida e pondo a espada de seus versos à causa do povo, Neruda sofreu no próprio corpo a dor heróica dos idealistas. Seus poemas extrapolaram continentes, e condizem com o infortúnio dos pobres do mundo, e denunciam o ridículo imoral da ambição e tirania. Indignados e incendiários, adentram o século 21 com extraordinária atualidade, como se nada aprendêramos após tantos crimes contra a humanidade: “Eles aqui trouxeram os fuzis repletos de pólvora, / eles mandaram fazer o extermínio. / Eles aqui encontraram um povo que cantava / um povo por dever e por amor reunido. / Uma menina magrinha caiu com sua bandeira / e o jovem sorridente rodou ferido a seu lado... Por esses mortos, nossos mortos, peço castigo. / Para os que salpicaram a pátria com sangue, peço castigo. / Para o verdugo que mandou essa morte, peço castigo.... / Para o que deu a ordem de agonia, peço castigo. / Para os que defendem esse crime, peço castigo...” Eia, os artistas indignados e heróicos, que tombaram nestes tempos sangrados pela guerra. Ah, que ausência mais presente, meu Neruda, camarada!
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Romildo Sant’Anna recebeu o prêmio “Casa das Américas” Havana. É curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’