No disco “Graceland” (1987), de Paul Simon, há uma canção composta basicamente em língua zulu: “Homeless” (Sem-teto). Gravada a capela, o espetacular enredo de vozes africanas remete a um veio ancestral que germinou em todo continente americano. Da variedade sonora de solistas e combinações vocais afloram nuanças que se alternam estridentes, graves, compassadas, percutindo um vozeirio polifônico, radical, respiratório, emocionante. Já quem assiste ao dvd “Tambores de Minas” (2004), de Milton Nascimento, percebe a realeza física da personagem artística – o cantor -, a variedade de timbres dos batuques, metais e cordas, a dança nativa encenando ícones, ritos de louvores e devoções, tudo em harmonia acústica e visual. Em meio à cinematografia da luz, flui a poesia de sumo crioulo, de significativo contorno melódico e semântico, combinando a tradição literária do ocidente à energia da madeira, do chão e dos bichos, sedimentados na forja africana de ser no tempo, e a vida passando nele. Ali estão os sonhos rituais afro-brasileiros, as alegrias e aflições de existir e de morrer, e o amor ao homem e à terra sintetizando a existência. De Sul a Norte – repito –, esta é a tessitura primordial dos cantos e melodias em nosso continente.
Quem mergulha na intensidade sentimental e nos semitons sincopados de Bessie Smith, Billie Holiday e Janis Joplin; quem viaja no preciosismo musical de Cole Porter, Gershwin e Pixinguinha, na guitarra emocional e intensa de B. B. King e Jimi Hendrix, e nas vozes rasgadas de Louis Armstrong e Elza Soares, sabe a que me refiro. Em certos casos, supera-se a agonia noturna de Charlie Parker, Thelonious Monk que remoçam em sopros de Paulo Moura. Erguem-se nos cantares de Nat King Cole, Ray Charles e Albert Collins. E, no Brasil, ressurgem em Alaíde Costa, Luís Melodia e Tim Maia. Ademais, manifestam-se no lirismo autodidata de brilhantes letristas como Cartola, Monsueto, Lupicínio Rodrigues, João Pacífico e Assis Valente.
O blues, antes de ser música, é estado de espírito oprimido no suor agrário do sentimento e consciência negra. Reside na milonga, no mambo, na rumba e no merengue, no frevo e no samba, na seresta, na toada de viola, e nas improvisações do jazz, no soul, no rap e rock'n'roll. É o cantar da terra perdida num chão adotivo, em busca da conquista. Vive na sensualidade da dança, na paixão, no cafuné, no emotivo dos transes, medos e comprazeres da solidão e convívio. Sobrepassa os campos da Jamaica, Uruguai, Venezuela e Cuba, e ascende ao calipso das Antilhas, aos tambores de Minas, e se instala no bumba maranhense e no xaxado, nos lundus, maracatus, congadas e festas do divino. Encarna a atmosfera taciturna do ameríndio, e o ritmo da pele escura nas lavouras de escravidão, tudo derramado em sangue e sentimento, e tingido de azul-europeu mediterrâneo. Como brisa, o blues espalha e revive ebulições estéticas que se esparramam no entreter febril e musical do mundo novo.
Esses recortes de sonhos, e vidas, e axés, essas concepções de mundo brotadas ao Sul do deserto e cozinhadas em guetos e senzalas habitam a sonoridade das vozes em melodias, harmonias e palavras. Nos quatros cantos tropicais de uma nação, são fortunas dolentes de grandes artistas do povo como Naná Vasconcelos, João Mulato, Ângela Maria, Luiz Gonzaga, Jamelão, Tião Carreiro, Sandra de Sá, Nélson Sargento, Jorge Benjor, Donga, Itamar Assumpção e Adauto Santos. E Pena Branca e Xavantinho, e Clementina de Jesus, Lourival dos Santos, Paulinho da Viola, Nilo Amaro e os Cantores de Ébano, Nélson Cavaquinho, Jorge Aragão, Bezerra da Silva e Blackout. E Chico César, Jards Macalé, Pereira da Viola, Gilberto Gil, Élton Medeiros, Zé Kéti, Ismael Silva e Emílio Santiago. E Jair Rodrigues, Heitor dos Prazeres, Cascatinha, Mano Brown, Ataulfo Alves, Golden Boys e Dominguinhos. E Djavan, Agostinho dos Santos, Martinho da Vila, Noite Ilustrada, Lecy Brandão, João do Vale e candeias. São infindos negros blues e quase-brancos, tais e quais Vinícius de Moraes que, num samba da bênção, se declara Brasil, na foto multicultural, colorida em azuis, brancos e pretos. Saravá! |