MARVADA PINGA

Minha amiga Magê, há anos funcionária da Casa de Cultura, Teatro e Centro Cultural, e, portanto, íntima da espalhafatosa tribo artística, tem umas tiradas bem agudas. Fez-me ver, dia desses, que a chamada elite cultural, muitas vezes inculta e bela, incluindo-se setores da nata dirigente, "xinga, xinga, xinga, beija, beija, beija... e toma cerveja!".

Há que lhe reconhecer o crédito da razão. Essa turma, salvo exceções, fica na superfície da vaidade, autocelebração e modismos, antenada na última palavra que vem de fora.

Santo da casa não faz milagres, diz o refrão. O povão, alheio a essas elites, e deixando de lado o ruído muxoxo dos beijinhos, xinga, xinga e bebe pinga. Arre, cheguei ao mote de meu texto.

Um gênero significativo da moda caipira de raízes são as cantigas de patacoadas. Cornélio Pires, folclorista e autor de livros como "Conversas ao Pé do Fogo" (1921), compôs "Jorginho do Sertão" tornando-se em 1929, pelo famoso selo vermelho da Columbia, a primeira moda-de-viola gravada em disco no Brasil. Narra, com ares anedóticos, as aventuras de Jorginho que, numa carpa de café, enjeitou três casamentos. São enraizados nessas patacoadas artistas como Alvarenga e Ranchinho e Jararaca e Ratinho, que fizeram sucesso em discos, auditórios, teatros de revista e tevê.

Não há pessoa medianamente antenada na cultura brasileira que não conheça as estrofes de "Moda da Pinga", recolhidas do domínio público por Inezita Barroso e gravadas em 1953. Essa cantiga é emblema estético da oralidade, e síntese das cantigas de patacoadas. Seus versos brincalhões folclorizam e exaltam a tragédia anti-heróica do pinguço, por meio de imagens esteticamente refinadas e de alto poder de evocação plástico-visual. Disse-me Inezita que, ao gravá-la em 78 rotações (o lado "B" continha a primeira gravação de "Ronda", de Paulo Vanzolini), recebeu inúmeras cartas reclamando autoria de uma ou outra das estrofes. Sua casa, nessa época, era freqüentada por amigos que representavam parte da substância realmente culta de São Paulo, como Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda, Lourival Gomes Machado, Antônio Cândido... Em vista da notória identificação popular e o profundo elã cultural dessa canção, que leva o caboclo a acreditar que uma coisa que não é dele, é dele por legitimidade e pertencimento de nascença, cartas não paravam de chegar, reclamando autoria dos versos.

Inezita pediu a Vanzolini que compusesse mais uma estrofe, que seria misturada às demais numa regravação. Fazendo emergir o espírito que brota dos desejos e crenças mais profundos do povo, e que caracterizam o próprio Vanzolini como artista, o professor-cientista atendeu a amiga.

Novas cartas chegaram, reclamando autoria dos novos versos.

Na língua certeira do povo, "Moda da Pinga" contém alguns dos versos mais significativos da poesia-canção e moderna literatura brasileira. Vale a pena reproduzi-los, em seu deliciante humorismo, colorido sonoro e expressividade visual:

"Venho da cidade, já venho cantano,
Trago um garrafão, que venho chupano,
Venho pros caminho, venho tropicano,
Chifrano os barranco, venho cambeteano.
E no lugar que eu caio, já fico roncano, oi, lái! (...)
Cada vez que eu caio, caio deferente,
Meaço pa trás e caio pra frente,
Caio devagar, caio de repente,
Vô de rodopio, vô deretamente.
Mas seno de pinga, eu caio contente, oi, lái! (...)
Pego o garrafão e já balanceio,
Que é pa mor de vê se tá mesmo cheio,
Não bebo de vez porque acho feio,
No primeiro gorpe chego inté no meio.
No segundo trago é que desvazeio, oi, lái!.."

Este é o torneado de sentidos, que "desmancha na boca" - como diria Gilberto Freire, e ao qual as elites atribuem nota zero em gramática. Este é o "dialeto caipira", como escreveu Amadeu Amaral. Pouco importa quem seja o autor biográfico desse poema-canção. Importa sim compreender que quem diz nesses versos é a voz coletiva em sua função sentinte e pensante; é a população em suas aspirações, comédias e anseios. "Moda da Pinga" é retrato do vigor poético de homens e mulheres do povo; representa a substância eterna das raízes que fizeram do Brasil, o Brasil. Num nicho à parte, a elite, com suas zorras e patacoadas, xinga e xinga, beija e beija... e bebe cerveja!

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Romildo Sant'Anna, escritor, assessor científico da Fapesp, é curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' de São José do Rio Preto - SP - Brasil.

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