JOÃO PINGUINHA


a Marcos Fayad e Jorge Vermelho

Parecia índio da Índia, mas era mistura de preto com índio do Brasil. Do rosto escuro e olhar intenso transpareciam feições de um curandeiro ou pajé, dos altiplanos da Bolívia. Beatnik e hippie de primeira hora, das alpercatas à cabeleira black-power espantada, João falava de um quimérico namoro em Paris, não sei com que dama ou cavalheiro, e da cachorra Marta, “lídima encarnação da raça do povo”. Sintetizava a sociedade exclamando que as velhas do elevador usam perfume demais. “Consumir – acrescentava filosófico – é engordar-se de vazio”. Magriço na estatura e armação de ossos, suave na dicção e alma paladina, tinha um quê de Mohandas Gandhi, nos tempos de Bombaim. O Mahatma era seu ídolo, de quem recebera o dote da nostalgia de uma era incerta, recanto de suaves convivências torneadas pela poesia, e que se derramavam em enigmáticas preleções sobre a arte, a morte e a vida no além. Baseado em sua banca de revistas na rua principal, na verdade um bunker de afeições, construía castelos de cartas e, com Billie Holiday, enfeitiçava corações. Enxergava o místico nos doze assentos dos Cavaleiros da Távola Redonda, na arquitetura mágica das mandalas e apostava no regresso de Antônio Conselheiro e Dom Sebastião. Era limpo dos modos ordinários, e nunca fumou Mistura Fina ou algum cigarro de fábrica. Sorvendo a birita de cana em taça de vinho, lia em voz alta umas cartas de Guevara, copiadas em mimeógrafo, que lhe mandara por correio a menina de Guatemala – a que morreu de amor –, e poemas de Maiakóvski, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos e Allen Ginsberg. Carregava livros surrados no picuá de lona, colado na transversal do peito, e os recitava acarinhando palavras, em suspiros e uivos salteados, para o deleite de si. Sedutor irresistível, João Pinguinha era ouvidor, guru da rapaziada, e defensor platônico dos oprimidos, nos ganhos e perdas e danos dos anos 60.

Viveu na Casa de Cultura, a costurar artesanatos de couro, colares e brincos de sementes e enfeites de latão, em meio à hipnose de Bob Dylan, Brecht e as pulsações aceleradas de Albee. Um grupo de teatro o levou pra capital. Contra-regra e bilheteiro de espetáculos, foi preso por estigma de ser preto esquisito, desocupado. Padeceu quatro meses na Detenção, sob as leis da bandidagem. Sumiram-lhe as cores e cenários, e viu de perto a cara do diabo. Amargurado, de regresso à sua terra, veio pra despedir-se, para sempre. Viajaria a Porto Seguro, pra respirar oceano, deixar a tatuagem nos turistas e, quem sabe?, redescobrir o Brasil. Mas teve de voltar, súbito, à terra.

Fui vê-lo na 25ª hora do penúltimo dia. Eram cubículos calados, no isolamento do 2º andar. Seu corpo decrépito, desfigurado no pretume do AZT, já nem era o João, mas uma entidade. “Pega no meu braço, que nem tenho força pra alevantar a saudação” – sussurrou na prosódia mineira, musical, solene. Engoliu o minuto e desenhou um sorriso: 𠇎ia, meu adorável papel de seda, ...aperta um pra mim...” Piscou-me, e sorriu novamente. Fiquei a mirá-lo em silêncio, na covardia de não poder abraçá-lo. Tínhamos asco dessa doença, ele e eu, cada um a seu modo. João me compreendeu, pela blitz dos olhos e enigmáticos sinais. E por que iria se magoar comigo – consolei-me – se nosso afeto era maior, na grandeza da vida?

Sou homem de palavras, e um bilhete que não entreguei era-lhe saudação e despedida. Ficou na posta-restante de mim, talvez mais murcho e aflito que seu corpo penitente, escorrendo de si... Pelo vidro do caixão lacrado, dormia encolhido, tal como fora encontrado na madrugada, mãos cerradas à altura do rosto frio, cabelos ralos... parecia o feto no laboratório. Um silêncio passeava em grupos, e um visionário comentou que, de algum lugar, João nos mandaria uma arara escandinava, marcada num dos pés com uma fitinha colorida do Bonfim. E foi o que, de fato, aconteceu. Mas poucos a viram, linda, sobrevoando a cidade, na paz orgânica de João, indo esfumar-se lentamente no infinito.

Passaram-se anos e João se ajunta às criaturas que remexem delicadas no meu devaneio. Foram muitos os bilhetes amassados, perdidos, ficados por entregar, como são sem contas o rosário dos afetos que me acompanham pela vida. No dia nublado, falta-me perder o coração. Que os anjos estejam contigo no reino de Olorum, e a birita de cana em volta de uma fogueira, e um violão rasqueando vadio, em tuas noites e noites de Ypacaraí!

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Romildo Sant’Anna, escritor, assessor científico da Fapesp, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’

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